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Neste rectângulo de intensidade moderada, quem tem uma pose é rei. É assim no presente (basta ver quem se alcandora ao poder, aos jornais, às revistas), foi assim no passado. Ramalho Ortigão - "a ramalhal figura" compôs a personagem e legou-a à posteridade n'As Farpas. Escritor sofrível, crítico interessante, valeu pela crónica de um país que, mais de cem anos depois, sentimos tão perversamente igual.
Ramalho o sério, Ramalho o distanciado, Ramalho o perorativo anotador das idiossincrasias lisboetas, nacionais.
Ramalho, o grandessíssimo aldrabão.
Albino Forjaz de Sampaio, jornalista e escritor, escreveu em 1940 o livro "Volúpia (A Nona Arte: A Gastronomia)". Como o título antevê, nele se dedicava o autor aos prazeres da mesa e à gastronomia de alguns países. Dedicava também um capítulo à ligação entre gastronomia e literatura, abordando três grandes figuras literárias oitocentistas: Eça, Ramalho e Fialho.
Foi nessas páginas que nasceu a minha admiração por Ramalho ao ler o seguinte texto, retirado por Sampaio do "Cozinheiro dos Cozinheiros" de Paulo Plantier:
“... eu vou-vos ensinar a frigir batatas.
Saibam todos os meus adversários o modo por que eu procedo quando intento oferecer aos meus amigos esse delicioso manjar das batatas fritas.
Está já agora decidido... Não! não morrerás comigo, ó doce, ó bom, ó divino segredo!
Apercebo-me mandando vir de Sintra a manteiga mais fresca, e compro as melhores batatas que encontro. Depois disto vou para a cozinha e sento-me à banca das operações. Descasco as batatas cruas, aparo-as escrupulosamente e parto-as em fatias de meio dedo de grossura. Em cima do lume muito brando, quase de um rescaldo, coloco a minha frigideira de porcelana, lanço-lhe um bocadinho de manteiga e vou alourando pouco a pouco, branda e sucessivamente, as minhas rodelas. É uma operação para que se não quer pressa, mas dedicação, mimo e paciência.
Depois de meio fritas, as batatas, vou-as retirando e pondo à janela ao ar. Terminado este primeiro serviço, faço atear uma forte fogueira e reponho no lume a frigideira com um grande naco de manteiga. Quando esta, derretida, principia a saltar em bolhas de fervura, lanço-lhe outra vez as batatas afogadas na manteiga em ebulição, empolam então pronta, rápida, portentosamente e cada uma das rodelas toma logo uma forma esférica.
É admirável, é quase miraculoso o resultado deste processo. A batata fica fofa, amanteigada, farinhenta, inchada, leve e mole como uma filhó ou como um sonho!”
A partir daí, ficaram as batatas "do Ramalho". Como Sampaio escrevia a seguir, "as batatas soufflés de Ramalho e as ameijoas à Bulhão Pato estão para a culinária portuguesa como as Farpas e a Paquita para a literatura. Produções que fizeram nome e marcaram época"
Qual não é o meu espanto, quando ao ler o livro de Hervé This descubro isto, "as batatas soufflées assemelham-se a pequenos, crocantes e dourados balões [ring a bell?]. Diz-se que foram descobertos em 25 de Agosto de 1837, durante a viagem inaugural da linha de caminho-de-ferro entre Paris e Saint-Germain-en-Laye. O menu do almoço oficial incluiria batatas fritas às rodelas mas as dificuldades da locomotiva em transpor a última subida forçaram o chef a interromper a sua fritura; assim que os convidados se sentaram à mesa ele voltou a submergir as rodelas em óleo muito quente de modo a torná-las crocantes. Elas incharam"
Oh surpresa! 1837? A menos que toda a historiografia e tradição gastronómicas francesas se tivessem, nestes últimos cem anos, virado em complot contra o nosso lusitano autor, cinquenta anos antes do registado ditado a Plantier já se fazia a receita do homem em França!
Oh Ramalho manganão! Métodozinho aprendido em viagem (ou lido nalgum journal chegado, como a civilização, de Sud-Express) e depois lançado ao mundo lusitano como seu... (Para ser justo: ele apenas refere que revelará o segredo... a autoria deixa à imaginação do leitor...) E a marosca foi tão bem feita que, em 2000, no prefácio da segunda edição, o jornalista António Valdemar lhe atribui a autoria "de uma receita de batatas empoladas que marcou a culinária"...
Pois é. País pequeno, periférico, provinciano, ignorante, conquistado pelo passe de mágica de um poseur.
Hoje, a informação corre-nos na ponta do indicador e é fácil confirmar: das centenas de resultados da pesquisa "pommes de terre soufflées" inúmeras variações da receita e nenhuma se refere a Ramalho. Ora adeus. Para o recycle bin da História.
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