"Busquemos, pois, as margens do Minho ou do Lima, a fluírem bravios, ocultando, nas túrbidas águas, uma jóia gastronómica, um ser enigmático, nem carne nem peixe (mas melhor do que carne, mas melhor do que peixe!), a mover-se no ritmo da onda, ou a fixar-se nas profundezas pedregosas: busquemos a lampreia, com a sua pomposa designação de agnata ou ciclóstomo, da ordem dos petromizontídeos, e com o seu apodo pícaro de "flauta de sete olhos" ou "chupa pedras". Busquêmo-la para amenizar os jejuns e abstinencias quaresmais, tal como o fazia, na austeridade monacal da Idade Média, o monge macerado pelos cilícios, enjoado do solitário pedaço de pão duro embebido no púcaro de água fresca."
Do António Manuel Couto Viana lembro-me de duas coisas: de um cartaz apologético da Mocidade Portuguesa, com versos do poeta e um desenho modernista que a minha adolescência influenciada pela brava dança dos herois cultivou na parede durante breves meses; do modo como me encenou na primeira e única peça em que participei (As Mulheres Também Perderam a Guerra, São Luiz, ano da graça de 1982).
Nas pouco solenes exéquias da, de vez defunta, Livraria Portugal, encontrei um dos livros que publicou sobre gastronomia, recolha de dispersos escritos entre 89 e 97 do passado século. (Bom Garfo & Bom Copo, Ed. Vega, 1997)
Nem de propósito: este excerto da comunicação "Quatro postos cimeiros da gastronomia do Alto Minho" (apresentada pelo autor no II Congresso de Gastronomia de Viana do Castelo, em 1985), incluída no livro, calhou-me mesmo bem como banda sonora para mais uma digressão imagética sobre o sacrifício e entronização da lampreia - desta vez no laboratório do restaurante Clara e sendo oficiante o chefe Sidónio.
"A lampreia!
De rara e valiosa, difícil é atrever-se-lhe, hoje em dia, qualquer bolsa minguada, pois iguala-se (e com que legítimo arreganho!), pelo preço vultuoso, às preciosidades de ourives. Mas... uma vez por ano, esqueça-se o mal que nos faz às finanças particulares pelo bem que sabe. Ano sem abancar frente a um tacho acogolado de lampreia é, para mim, ano desenxabido!
A lampreia!
Apresso-me a colocá-la, viva, vinda, talvez, das pesqueiras de Barbeita ou da Lapela, nas mão hábeis da cozinheira, que, num pronto, lhe amarra um fio à cabeça e a mergulha em água a ferver. Escaldada, e puxada para fora da panela pelo fio, é raspada com uma faca, que a despe da camada viscosa envolvente, e esfregada com uma toalha de estopa. Depois, submete-se, ainda, a dois banhos: um de água fria, outro, mais agradável e capitoso, em duas qualidades de vinho tinto: verde e maduro. É, então, que se lhe ceifa a cabeça e se lhe faz os cortes ao longo dos três últimos orifícios inferiores e na região anal (com mil cautelas, não vá a faca inexperiente furar-lhe a tripa e o conteúdo desta espalhar-se nos vinhos e no sangue misturados). Por fim, retira-se-lhe a tripa inteira. A lampreia está pronta para ser confeccionada sob as duas formas que melhor lhe quadram: com arroz e à bordalesa. (...)
Do António Manuel Couto Viana lembro-me de duas coisas: de um cartaz apologético da Mocidade Portuguesa, com versos do poeta e um desenho modernista que a minha adolescência influenciada pela brava dança dos herois cultivou na parede durante breves meses; do modo como me encenou na primeira e única peça em que participei (As Mulheres Também Perderam a Guerra, São Luiz, ano da graça de 1982).
Nas pouco solenes exéquias da, de vez defunta, Livraria Portugal, encontrei um dos livros que publicou sobre gastronomia, recolha de dispersos escritos entre 89 e 97 do passado século. (Bom Garfo & Bom Copo, Ed. Vega, 1997)
Nem de propósito: este excerto da comunicação "Quatro postos cimeiros da gastronomia do Alto Minho" (apresentada pelo autor no II Congresso de Gastronomia de Viana do Castelo, em 1985), incluída no livro, calhou-me mesmo bem como banda sonora para mais uma digressão imagética sobre o sacrifício e entronização da lampreia - desta vez no laboratório do restaurante Clara e sendo oficiante o chefe Sidónio.
"A lampreia!
De rara e valiosa, difícil é atrever-se-lhe, hoje em dia, qualquer bolsa minguada, pois iguala-se (e com que legítimo arreganho!), pelo preço vultuoso, às preciosidades de ourives. Mas... uma vez por ano, esqueça-se o mal que nos faz às finanças particulares pelo bem que sabe. Ano sem abancar frente a um tacho acogolado de lampreia é, para mim, ano desenxabido!
A lampreia!
Apresso-me a colocá-la, viva, vinda, talvez, das pesqueiras de Barbeita ou da Lapela, nas mão hábeis da cozinheira, que, num pronto, lhe amarra um fio à cabeça e a mergulha em água a ferver. Escaldada, e puxada para fora da panela pelo fio, é raspada com uma faca, que a despe da camada viscosa envolvente, e esfregada com uma toalha de estopa. Depois, submete-se, ainda, a dois banhos: um de água fria, outro, mais agradável e capitoso, em duas qualidades de vinho tinto: verde e maduro. É, então, que se lhe ceifa a cabeça e se lhe faz os cortes ao longo dos três últimos orifícios inferiores e na região anal (com mil cautelas, não vá a faca inexperiente furar-lhe a tripa e o conteúdo desta espalhar-se nos vinhos e no sangue misturados). Por fim, retira-se-lhe a tripa inteira. A lampreia está pronta para ser confeccionada sob as duas formas que melhor lhe quadram: com arroz e à bordalesa. (...)
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