segunda-feira, 30 de abril de 2012

Gemelli - um adeus português?

"Sou sincero e sou directo: o mercado é muito complicado, a vida está numa situação muito complicada, o Governo nunca ajudou e até nos cai em cima com impostos cada vez mais fortes (...) eu não sei quanto tempo vou aguentar (...) espero voltar a vê-los, ainda estar cá durante muito mais tempo mas se um dia ouvirem dizer que o Gemelli já cá não está, não levem isto a mal, porque é uma coisa que não tem a ver com o público, antes com o mercado que às vezes não é muito agradecido a quem como nós tenta proporcionar verdadeiras experiências sensoriais e verdadeiros momentos de prazer através de uma coisa que todos nós gostamos: boa mesa, boa comida e um bom copo de vinho para acompanhar. Muito obrigado a todos"


Foi com estas palavras que Augusto Gemelli encerrou a sua apresentação no Peixe em Lisboa - palavras magoadas com uma situação que parece não ser a melhor e que evidenciam um estado de desânimo que se reflectiu de alguma forma nas criações apresentadas.

Que Augusto Gemelli é um belíssimo cozinheiro não tenho dúvidas (ainda hoje guardo na memória umas flores de courgette recheadas que me humedeceram os olhos). Que os seus restaurantes tenham proporcionado a muitos os referidos momentos de prazer também admito - ainda que comigo tal não tenha acontecido (há dias negativos, tanto para a cozinha como para o cliente e é uma pena quando coincidem...). As criações apresentadas - 3 - não foram, infelizmente espelho dessa qualidade.

Pratos que mais pareceram saídos da escolha de um comensal em buffet de fim-de-semana, com uma aglomeração de elementos com reduzida interligação visual, desequilibrados, pouco apelativos, à deriva, pouco aceitáveis a este nível e, principalmente num chef com o seu gabarito.

 Dueto de camarão tigre cru e cozinhado com aromas exóticos
Salmonete 360º com rúcula e tomate
Salmão 360
Dito isto, importa-me sublinhar o que de positivo e interessante a apresentação de Gemelli trouxe.

Uma boa ideia subjacente: a utilização intensiva de todas as partes do peixe.

A consciência de que aos cozinheiros cabe parte da responsabilidade de incentivar um produto que é português e de abrir novas e mais profundas hipóteses de negócio.

Os diversos modos de aproveitamento do camarão tigre que tão bons exemplares apresentou (panado, em tártaro, em pó):


O pó de camarão feito a partir das cabeças desidratadas a menos de 50º até secarem, trituradas, voltadas a secar até se obter um pó com um aroma muito intenso.


O corpo do camarão panado em farinha de milho (utilizada para a polenta) curado num fio de azeite para acrescentar um lado crocante.



O uso de rúcula em três variações:  fresca, desidratada e frita, e as suas flores; da pele do tomate seca ao ar durante a noite.


O recurso ao "gelburguer" para aglutinar (em engenheirês "ganhar presa") a carne do pescado.

A tempura de salmonete utillizando polme aromatizado com tinta de choco e um óleo preparado a partir da utilização das cabeças de salmonete.



O aproveitamento da pele do salmonete, seca no forno para ficar crocante; das grainhas do tomate para uma emulsão substituta do ketchup.

Um pesto de amêndoas e rúcula e um pistou feito só de espinhas e algas cozinhadas, criação original do chef Alfonso Iaccarino.



O gravlax, lombo de salmão marinado em seco em açúcar e sal, temperado com funcho, laranja e pimenta preta,


que o Chef "lasqueou" e secou de modo a tornar o salmão ainda mais crocante.


O pó de azeitona, feito do mesmo modo que o da cabeça de camarão.


As trufas de salmão crú - carne da barriga picada com "gelburguer", panada em pó de azeitona (ao qual se agregou pó fumado, o que permitiu dar uma sensação de grelhado a algo que é cru) -, sobre puré de funcho (cozido e emulsionado) como base para as trufas.




Mil-folhas de salmão, feitos com o gravlax desidratado entremeados com requeijão aromatizado com funcho fresco e casca de lima picada e não raspada (de modo a não ter uma componente cítrica não muito intensa em termos de perfume sem sacrificar a frescura que lhe é inerente).


A combinação entre uma salada de funcho fatiado e os cubos de salmão ligeiramente braseados


Valeu a pena? Oh, tudo vale a pena...

Grande Joya

Está a sair a lista dos The World's Best 50 Restaurants.

Grande novidade até agora: o Vila Joya entra para a 45ª posição. É bonito. Parabéns Chef Dieter Koschina!

(Fonte:  http://eusougourmet.blogspot.pt)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Lucky Luca

Afortunado Luca Collami por viver numa região gastronomicamente rica de um país rico em tradição.

Afortunado Luca por poder ver reconhecida a sua arte, construída sobre sensibilidade e bom senso, sobre as matérias primas, as memórias e os saberes ancestrais da sua Ligúria.

Afortunado Luca que nos visitou no âmbito do Peixe em Lisboa e pode disfrutar deste Sol e deste peixe e de um público interessado em conhecer as suas propostas.


Afortunados nós?

Como escrevi há umas semanas, tinha a expectativa de ver trazidos ao festival algumas das criações mais emblemáticas do seu restaurante. Ao invés, os pratos apresentados procuraram ser uma introdução à cozinha de território lígure. Intenção louvável nestes tempos que se pretendem de redescoberta das tradições e dos modos locais, da sua conterrânea inspiração Slow Food.

Considerando eu que todas as experiências que vivemos são sempre enriquecedoras não tenho dúvidas de ter saído da sua apresentação mais rico do que entrei... ainda que com sentimentos contraditórios. É suficiente a um chef estrelado - por mais exemplar que seja a técnica, mais correcta a receita, melhores os ingredientes - apresentar três pratos que mais não são que uma "miniatura", um leve roçagar pelo que deve ser - tem de ser! - uma grande cozinha, merecedora de encómios e galardões? Não será diminuidor para o próprio e para a imagem que de si ficará para um público conhecedor? Não merecerá mais empenho - ou, porque não, maior arriscar - quem se dá ao trabalho e à despesa de o vir ver?

Concluam vocês, leitores meus.

Como início, a feitura de um dos mais celebrados pratos lígures -  cappon magro. Essencialmente uma combinação de vários tipos de vegetais, peixe, ervas aromáticas e azeite, permite dezenas de variações, à vontade da cozinheira e de acordo com as disponibilidades da estação e do orçamento. De origem antiquíssima, apropriado por todos, ricos e pobres, a justificação para o nome varia - o que só será importante para os historiadores. Importante para todos, o prazer que advém da sua degustação, maior ainda se deixada de espera para o dia seguinte ao da sua feitura.

O elemento essencial é o molho verde - muita salsa, alcaparras, biqueirão, ovos cozidos, miolo de pão aboberado em leite e azeite - que irá ligar todos os restantes ingredientes.

Galletta di marinaio
equivalente aos biscoitos utilizados no passado pelos marinheiros, farinha e água, recuperado pelo chef para a sua versão do cappon, aboberados em azeite e água para amolecer



Camada a camada, se construiu o prato... bello!





Segundo prato, uma homenagem a Lisboa e uma possível geminação com a sua Génova: o "nosso" bacalhau, fresco, em carpaccio (ligeiramente salpicado com flor de sal), em diálogo com um pesto bem tradicional, preparado na hora. O manjericão genovês (basilico genovese) - uma variedade local com Denominação de Origem Protegida - ficou em casa, sendo utilizada a variante portuguesa, facto que o chef não deixou de assinalar.

As matizes de tom do bacalhau, o "rugoso" do pesto a contrastar com a suavidade do peixe...

O mortaio familiar, trazido na bagagem.
Quanto mais usado, melhor o sabor do pesto que dele sai preparado...





Efectivamente muito simples - fica por confirmar a bondade da ligação bacalhau-manjericão... - mas que chamamento! Não acham?
 


Finalmente, uma salada fresca de Verão, aqui feita com cavala fumada, peixe preferido pelo chef no restaurante ao mais usual atum.



Elaboração visualmente cuidada de um prato popular, descuidada e diariamente elaborado pelas donas de casa lígures, peixe, pão torrado e ervas...



Conclusão final?

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ricardo Costa, é 1 estrela do Norte

Lugar ao mais bem sucedido - em termo Michelinescos - cozinheiro português. Ou devo dizer cozinheiro português com maior taxa de aprovação internacional? Relativa e provavelmente injusta para com vários confrades em termos qualitativos, a frase refere uma realidade incontornável: a Ricardo Costa foi atribuída 1 estrela na Casa da Calçada e, menos de dois anos depois da estreia do "seu" The Yeatman, voltou a obter a aprovação dos inspectores do guia francês. Um (início de) sucesso.



A apresentação no Peixe em Lisboa foi assim precedida desta expectativa: conseguiria o chef traduzir ao vivo e em condições de auditório esse trabalho?

Os três pratos apresentados, presentes no dia a dia do restaurante, foram a resposta positiva.

O primeiro, um cocktail de leitão e ostra, é uma "surpresa" servida a meio do menu de degustação. Perna de leitão confitada 6 horas, desfiada e colocada num tacho com sucos de leitão e aparas de lavagante, chalota, tutano de vitela bringido em água. Sobre este composto é colocada uma ostra, em contraste com os sucos da carne. Termina com uma espuma de batata.





Sobre as camadas de leitão e da ostra, uma espuma de batata

Não há foto final porque o chef insistiu na prova antes de os repórteres fotográficos da assistência lhe poderem deitar a lente... Deliciou-se quem provou!

Segundo prato, uma entrada de variações de atum: tártaro, lâminas e barriga dourada na frigideira.


O tártaro, com chalota, sal, pimenta e azeite, envolto em cannelloni de folhas de pepino pinceladas com gelatina de pepino. A barriga, sobre creme de vieiras. As lâminas, combinadas com pasta de beterraba  e esferificações executadas a partir da trituração da mozzarella com água de pepino.


O prato a ser lançado brevemente pela Vista Alegre, parte de um conjunto desenhado por vários chefs. Este, por Dieter Koshina
A pasta de beterraba:
duas folhas de pasta/massa fresca prensadas com "papel" de beterraba (tapioca cozida com beterraba, triturada, desidratada)


Um prato a cuja coerência de ingredientes é contraposta uma relativa ausência de ligação visual entre os diversos elementos. Explicando: por si só cada parte é visualmente atraente - o cannelloni, e a oposição/complementaridade das cores verde/vermelho, o vermelho cru a sobressair dos pedaços de barriga, o marmoreado da pasta, o brilho das sementes de tomate - mas o conjunto é mais percepcionado como uma acumulação de elementos do que um todo coerente. Apesar disso, é imediato o agrado e, principalmente, a vontade de querer provar. Por isso...

Terceiro prato, uma caldeirada.


O "divertimento" do chef em torno de algo tão enraizadamente popular (eu diria "nacional" mas teria de especificar "internacionalmente nacional"). A descontrução da caldeirada, com todos os elementos confeccionados em separado e de acordo com as suas características

Cherne e pregado laminados, lagostim, carabineiro. E ainda percebes, mexilhão, amêijoas

Concentrado de tomate e chalota, retiradas as grainhas, desidratados.
Caldo de crustáceos com casca de carabineiro que proporciona uma cor mais acentuada.




Ameijoas (da Ria Formosa) abertas em vinho branco e alho, uma a uma, de modo a controlar o tempo de cozedura. Um chip de batata, crocante contra texturas suaves.

Tradição e modernidade, técnica e saber, num prato muito atractivo e que me deixou com muita vontade de rumar a Vila Nova de Gaia e degustar estes prazeres descansando a vista no casario fronteiro da Invicta.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Gastroescritas #6 - L'Asie des Frères Pourcel, de Sophie Brissaud

Coisa curiosa, a posição dos cozinheiros na sociedade - durante séculos foram artífices de sobrevivência, passaram a adereço de luxo assinalando ricos e poderosos, depois foram instrumento de empresários e, desde há poucas décadas, são imensas estrelas brilhando numa sociedade global.

Gémeos na identidade e na cozinha, os irmãos Pourcel, souberam construir uma reputação a partir do seu restaurante Le Jardin des Sens, em Montpellier. Três estrelas Michelin em 1998, hoje em dia 2 estrelas, tiveram a sapiência de diversificar o negócio, expandindo-o para onde, no presente, o dinheiro corre mais fácil - a Ásia.



O livro cartografa esta expansão, dando-nos não só uma visão de cada um dos quatro restaurantes em laboração, situados em Tóquio, Bangcoque, Singapura, Xangai como uma descrição da cozinha de cada um dos países, terminando na casa mãe em França.

Pode ser incluído na categoria dos "coffee table books", para manter em estudada displicência sobre a mesa de apoio às visitas - belas fotografias, preparações de estimular a gula (e a elevar a responsabilidade d@ cozinheir@ lá de casa...) - ou pode ter um carácter inspirador para as experimentações caseiras.

A bisbilhotar, de qualquer das formas.






segunda-feira, 23 de abril de 2012

Léon marinho


Sobre Àngel Léon já escrevi há uns dias. Positivamente obsessivo com a investigação do aproveitamento gastrómico dos organismos que habitam o oceano, "pai putativo" (como referiu) do plâncton como alimento (vinte cinco tipos - cada um com o seu sabor e o seu cheiro - são criados em "quintas" onde se multiplicam as células), no seu restaurante proporciona uma viagem alimentar pelos diversos níveis do mar (costa, alto mar, profundidades).

Em Lisboa, para além de uma abordagem aos diversos pratos já servidos no seu Aponiente, confeccionou três pratos.


"Embutido de pescado"
Feito exclusivamente como produtos do mar, com um teor em gordura muito elevado,
a partir de espécies piscícolas não utilizadas habitualmente na restauração.
(Foto: Aponiente)

Tártaro com sabor a chouciço/salsichão, feito com peixe
(Foto: Aponiente)
Primeiro prato: Representação do habitat da Acedía 
Para além do seu sabor intrínseco e do prazer da degustação que se procura oferecer, o prato tem um objectivo pedagógico -explicar aos clientes onde vive e qual a envolvente deste peixe
A Acedía ou lenguadillo (obrigado, Ana!), peixe típico de Cádiz,
muito apreciado na Andaluzia, aqui reaproveitado por Léon
Frito em gordura.... de peixe
Cremoso de puré de batata ao qual se adicionaram duas espécies de plâncton









Segundo prato
A partir de un dos "peixes sem nome" / "pescados clandestinos", peixes sem compradores faz-se este prato.
Uma espécie de peixe espada mais cabeçudo e mais feio.
Marinado em lactose (para secar o peixe sem o salgar e lhe dar um pouco de profundidade de sabor), o que intensifica o valor de um peixe desprezado...
E uma marinada de beterrada, gengibre, pele de limão marroquino, menta, onde se marina o lombo
Obtém-se esta peça, com esta cor e respectiva adição de sabor
Emulsão de leite e casca de cítrico
...E o verde de uma planta halófita, parecida com a salicórnia


Terceiro prato: "Pinchón de mar" o peixe que sabe a pombo...
Impregna-se a vácuo um lombo de robalo numa marinada à base de fígado de pombo durante 4 dias
... Frita-se em gordura de peixe e emprata-se com um molho feito à base de um caldo de peixe
Considerando a cada vez maior escassez de muitas das espécies de consumo tradicional, parece inevitável o aproveitamento de muitos dos recursos marinhos actualmente desprezados. Este será, seguramente, um dos caminhos próximos da restauração que Léon, em avanço, já percorre. Espero com curiosidade o início da comercialização do seu plâncton para perceber até que ponto introduz novas e interessantes cambiantes no sabor dos nossos pratos.

Até lá, resta-nos a expedição até El Puerto de Santa María...