Há um quadro que considero a mais extraordinária obra de pintura executada por um português...
... a mais extraordinária pintura executada por um português, dizia eu, e que - ainda mais do que a maioria das obras da escola portuguesa de pintura do Renascimento - me destabiliza a existência e faz de mim um ser à beira da explosão das emoções.
Na sua aparente simplicidade - um ser humano enquadrado por um negro fundo - é um mundo de indicações, de interrogações, de descobertas. Quem é este homem, que arrepio é este que, insidioso nos percorre, de incomodidade e culpa? Não precisamos de ser crentes, não precisamos sequer de pertencer à ocidental matriz cultural judaico-cristã para com ele nos relacionarmos. Este é um homem violentado, agredido. Este é um homem sobre o qual se exerceu a mais subtil, a mais extrema das violências. Este é um homem a quem foi retirada a sua humanidade: é um homem impedido de comunicar. Homem que não pode olhar. Que não nos pode olhar e, por isso, não podemos entender.
Sabemos - porque no-lo contaram desde pequeninos, que este é um sobre-homem, que o seu domínio só transitoriamente é o deste mundo. É um deus e a provação que sofre prova essa mesma transcendência. Como se o despir da sua humanidade fosse a franquia a pagar para o retorno à sua divindade.
Temos assim um momento em que o divino se materializa e é humano: um momento tirado à imortalidade. Vindo do negro inidentificável (porque escapa à nossa percepção de mortais) e prestes a lá voltar.
Tome-se agora esta obra, poucas décadas mais nova:
Num bosque, uma mulher amamenta enquanto um soldado a parece observar. Um relâmpago rasga o céu.
Que banalidade, pensará de imediato a nossa saturada visão contemporânea, que ausência de motivo, de história. De explicação. De relevância.
E, no entanto, é essa a sua grandeza. A de nos indicar que todo o momento (neste caso o presente que o relâmpago fixa) tem o valor da eternidade. Que, parecendo-se na sua aparente ausência de relevância com tantos mais é, ainda assim, relevante porque absolutamente único. Este é, em oposição ao primeiro, um momento eternizado.
Penso muitas vezes nestas duas pinturas e de como a sua oposição é tão aplicável à gastronomia.
Uma refeição sublime, uma sinfonia de andamentos perfeitamente equilibrados, de harmonias de gostos e timbres de texturas, de cores e matizados, um prato em rigoroso equilíbrio de elementos, uma criação que nos prende e sublima - eis um momento de eternidade, um breve assomo da perfeição à nossa mesa, um fugaz contacto do humano com o etéreo.
Mas um prato do receituário tradicional, tantas vezes repetido e tão longamente apurado, uma singela preparação, herdeira de séculos de mãos experientes, um simples alimento sabiamente preparado - ah, que eternidade de momentos tão longamente repetidos e, sempre, sempre tão únicos!
descansem que este é um post sobre gastronomia
... a mais extraordinária pintura executada por um português, dizia eu, e que - ainda mais do que a maioria das obras da escola portuguesa de pintura do Renascimento - me destabiliza a existência e faz de mim um ser à beira da explosão das emoções.
Sabemos - porque no-lo contaram desde pequeninos, que este é um sobre-homem, que o seu domínio só transitoriamente é o deste mundo. É um deus e a provação que sofre prova essa mesma transcendência. Como se o despir da sua humanidade fosse a franquia a pagar para o retorno à sua divindade.
Temos assim um momento em que o divino se materializa e é humano: um momento tirado à imortalidade. Vindo do negro inidentificável (porque escapa à nossa percepção de mortais) e prestes a lá voltar.
Tome-se agora esta obra, poucas décadas mais nova:
Num bosque, uma mulher amamenta enquanto um soldado a parece observar. Um relâmpago rasga o céu.
Que banalidade, pensará de imediato a nossa saturada visão contemporânea, que ausência de motivo, de história. De explicação. De relevância.
E, no entanto, é essa a sua grandeza. A de nos indicar que todo o momento (neste caso o presente que o relâmpago fixa) tem o valor da eternidade. Que, parecendo-se na sua aparente ausência de relevância com tantos mais é, ainda assim, relevante porque absolutamente único. Este é, em oposição ao primeiro, um momento eternizado.
Penso muitas vezes nestas duas pinturas e de como a sua oposição é tão aplicável à gastronomia.
Régis Marcon ; foto Laurence Barruel |
Régis Marcon ; foto Laurence Barruel |
Régis Marcon ; foto Laurence Barruel |
Régis Marcon ; foto Laurence Barruel |
Régis Marcon ; foto Laurence Barruel |
Mas um prato do receituário tradicional, tantas vezes repetido e tão longamente apurado, uma singela preparação, herdeira de séculos de mãos experientes, um simples alimento sabiamente preparado - ah, que eternidade de momentos tão longamente repetidos e, sempre, sempre tão únicos!
Tanto uns como outros, tão válidos, tão queridos, tão indispensáveis.
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