Lisboa ainda me consegue surpreender positivamente. Numa pequena rua, uma livraria "de fim de estoque", guarda segredos a preços de desbarato. Livros patinhos feios que são os que um editor escolhe por um amor que nem tanta gente assim compartilha e ficam destinados à fogueira da reciclagem após anos a ganhar humidade em armazéns desprezados. Livros belos - que pareciam esperar-me.
Como este magnífico "Sucré.Salé" de Pierre Gagnaire.
Escrevi há dias sobre a possibilidade de comungar prazeres. Partilham-se os prazeres ou o sentimento é tão único que impartilhável? Podemos, no entanto, com eventuais modos de sentir, comungar visões, cheiros, gostos.
"Sucré.Salé", Editions de La Martinière, Paris, 2003. Textos de Pierre Gagnaire e François Simon. Fotos de Jean-Louis Bloch-Lainé (em 2000)
Mais Gagnaire no seu site, e nesta biografia.
Realce para a colaboração com o Prof. Hervé This (fundador da gastronomia molecular), cujas realizações estão registadas em dois livros La Cuisine c'est de l'Amour, de l'Art, de la Technique (2006) e Alchimistes au Fourneaux (2007).
Como este magnífico "Sucré.Salé" de Pierre Gagnaire.
Escrevi há dias sobre a possibilidade de comungar prazeres. Partilham-se os prazeres ou o sentimento é tão único que impartilhável? Podemos, no entanto, com eventuais modos de sentir, comungar visões, cheiros, gostos.
Quente, suave, suculento: um ananás Victoria com sulcos escavados semeados de açúcar e grãos de baunilha, longamente assado |
Este é um livro de comunhão, um perfeito livro de gastronomia. Não indica as receitas; aborda as propostas culinárias apresentadas, Gagnaire por Gagnaire.
Sobre uma bolacha, um figo assado recheado de mascarpone numa espiral de caramelo |
"Cozinhar é sempre um trabalho. Esta tarefa repetida, frequentemente laboriosa, algumas vezes ingrata, perigosa eventualmente, transforma-se numa autêntica fonte de felicidade quando se torna criação. A cozinha ganhou valor aos meus olhos quando deixou de ser uma repetição cega de práticas aprendidas sem discernimento. Cozinhar tornou-se uma felicidade quotidiana quando ousei recusar fazer da cozinha uma queixa esclerótica redita do mesmo modo dia após dia. Não houve ruptura teatral com o passado e as tradições. Cada dado clássico, académico, é para mim o apoio necessário para franquear um novo caminho em direcção à modernidade, precisamente aquele que procuro. (...)
A criatividade nasce da autenticidade e apoia-se na tradição. Um pintor não reinventa o arco-íris, utiliza as cores de outro modo (...) Esta criatividade não é criação a qualquer preço. Deve ter um sentido correcto, eficaz, entusiasmante e ser rigorosamente dominada, domesticada. Existe uma fronteira a não ser ultrapassada, sob pena de queda na verborreia, na exuberância decadente, na falta de sentido ridículo, na inutilidade. Até onde se pode ir? Aí começa a dor! É preciso lutar contra a comodidade, os modos, decidir as cadências, o ritmo, com uma grande severidade, delimitar o perímetro da sua arte com honestidade. Assim com a página em branco convida à escrita, o branco do prato aí está para conceber o prato. Nascido do silêncio, da concentração, este impõe-se , obrigatório por necessidade de pureza. O branco é o símbolo da inocência, do ignorado, do nada que precede todo o começo, rico de todas as possibilidades.
Do jazz, evoca-se o tempo, as dissonâncias. Amo os silêncios, verdadeira respiração que anunciam os tempos fortes que fazem vibrar as notas. Amo as dúvidas do músico, a sua falta de jeito. Amo igualmente o seu humor, o seu riso de criança, a sua relação carnal com o instrumento, essa embriaguez das notas que o conduz ao excesso. Como no jazz, a cozinha pede humildade, uma ponta de arrogância. Exige uma pitada de inconsciência para escrever quotidianamente a sua partitura. Apaga-se sem nostalgia assim que a nota tocada, assim que o prato criado.
O prato concluído é um condensado de vida, com os seus sonhos, as suas fraquezas, os seus excessos, as suas aspirações, todo inocência. Existe um pouco da infância nesta liberdade sem ardil nem artifícip. O trabalho torna-se então felicidade para si e para os outros, é criação. A criação é uma realização conseguida se o resultado se regista como uma evidência de belo, de bom. Como escreveu Gillet, "o que é bom, não é a frágil osmose entre o provador, o seu desejo, o chef, o serviço e os esforços para obter uma bela obra"?
(...) Não se trata de cozinha de um iniciado. Antes uma cozinha de apaixonado. Tal é o meu universo de trabalho. Tal é o meu modo de vida. Tal é a minha vida"
Vermelho incandescente de uma romã, vermelho opaco de um marmelo confitado, para acompanhar um gelado de pimenta de Séchouan e uma geleia de marmelo |
"Sucré.Salé", Editions de La Martinière, Paris, 2003. Textos de Pierre Gagnaire e François Simon. Fotos de Jean-Louis Bloch-Lainé (em 2000)
Mais Gagnaire no seu site, e nesta biografia.
Realce para a colaboração com o Prof. Hervé This (fundador da gastronomia molecular), cujas realizações estão registadas em dois livros La Cuisine c'est de l'Amour, de l'Art, de la Technique (2006) e Alchimistes au Fourneaux (2007).
Sem comentários:
Enviar um comentário