"Querida Mô,
Lembra-se da Toninha? Não se deve lembrar, já lá vão tantos anos... A Toninha era a factotum da casa da minha tia-avó Pim, cozinheira e governanta, dama de companhia e confidente, um poço de sabedoria popular mas igualmente repositório de muitos saberes e preceitos apreendidos nas casas por onde serviu. Veio já entradota para casa da minha tia, por indicação de uma amiga da família, depois de muitos anos a cozinhar para António Bello, o grande Olleboma, autor de um dos meus livros de ... eu ia dizer cabeceira mas enganar-me-ia no local, "referência" fica muito melhor. Conheci o senhor através das histórias que a Toninha me contava ainda menino, quando me sentava num banco alto da cozinha a olhar-lhe os movimentos enquanto ela fazia o almoço. Prodigiosas histórias! O meu amor pela gastronomia deve ter nascido nessas horas, só pode ter nascido ao ver aquelas mãos, embalado pelas suas palavras. "Ai, o senhor António Maria era muito exigente com os modos com que se tinha de preparar as coisas, tudo tinha de seguir os preceitos antigos! Toninha, o que os antigos levaram séculos a aperfeiçoar é para respeitar, passava a vida a dizer, isto tem de se fazer assim e assim, aquilo só pode ser acompanhado por tal e tal, os temperos são estes e só estes...".
O exemplar do Culinária Portuguesa que tenho, ofereceu-mo ela quando fiz vinte e um anos, a primeira edição, do autor, com uma dedicatória comovente "À Toninha, minha companhia nas investigações culinárias, um agradecimento profundo" que revelava muito mais do que a modéstia dela tinha calado. Fiquei mudo com o presente e ela muito envergonhada a pensar que não tinha gostado por ser um livro velho e usado, "pensei que o menino lhe iria fazer jeito...". Oh Toninha, o jeito que me fez desde então!
Foi com a Toninha e a sombra tutelar de Olleboma que aprendi a cozinhar bacalhau. E se hoje lhe falo dela, foi porque caí na asneira de me julgar na Lisboa do seu tempo e aceitar almoçar numa tasca da Baixa que anunciava um bacalhau com grão... tradicional. Quem lhes desse com o bacalhau inteiro na bochecha... Chamar tradicional à sola de borracha a boiar entristecida na água que a couve largava acompanhada por duas batatas a desfazer-se de sobrecozidas e um pelotão de grãos esvaziados directamente da lata... Sim, começa a ser tradição tratar mal os clientes nesta cidade de referências perdidas."
BACALHAU COM TODOS
Deixe o bacalhau de molho durante a noite, mudando a água pelo menos uma vez. Retire as espinhas, deixando ficar as peles. Coloque num tacho que tenha tampa e verta sobre as postas água a ferver. Tape e envolva num pano, durante vinte minutos a meia hora. Entretanto coza as batatas com casca, cebolas, ovos e os vegetais à parte.
Para servir, escorra bem o bacalhau e coloque-o no centro de uma travessa sobre um guardanapo. Descasque as batatas e os ovos e disponha-os à volta do bacalhau, assim como as cebolas e os vegetais, igualmente bem escorridos. Tempera-se no prato com azeite e pimenta branca.
Como vegetais é mais usual empregar-se a couve portuguesa, podendo optar também por couve lombarda, feijão verde, grelos de nabo ou de couve, brócolos ou couve-flor. Em alternativa ou em complemento, grão de bico cozido, sobre o qual se poderá polvilhar um pouco de colorau.
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