quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um Gomes de Sá tropical

Rubem Fonseca, o grande romancista brasileiro, deixou-se tentar, no seu mais recente romance publicado em Portugal (O seminarista, Ed. Sextante, 2010) pelo bacalhau à Gomes de Sá. É-me inevitável referir os paralelismos com essoutro grande que foi Manuel Vasquez Montalban: o mesmo olhar desencantado sobre o seu semelhante da personagem principal, o apelo da gastronomia que é imagem de marca de Montalban e que surge agora no escritor de além-mar.

Apesar da mestria de Fonseca, a cena entra um bocado de calçadeira na narrativa; o português retratado é quase um clichê, o Manoel que qualquer carioca descreveria como típico portuga; vale, no entanto, pela divulgação de uma das mais perfeitas maneiras de preparar o fiel amigo:

"«Você tem a certeza de que a comida daqui é boa?», disse D.S. olhando em torno. As mesas não tinham toalhas, e sobre elas viam-se recipientes com guardanapos de papel.
«Eu garanto, D.S.»
O seu João, o dono, se aproximou e nos cumprimentou, passando um pano úmido sobre a mesa.
«O que temos hoje em matéria de bacalhau, seu João?»
«Temos bacalhau à Gomes de Sá, bacalhau à Zé do Pipo e bacalhau à João do Buraco. O senhor sabe que há mais de cem maneiras de fazer bacalhau?»
«Sei, seu João, sei. O que o senhor nos aconselha?»
«Estão todos muito bons», disse o seu João com um forte sotaque, «mas o bacalhau à Gomes de Sá eu mesmo preparei, comecei ontem, pu-lo de molho numa bacia de água, trocando a água seis vezes, depois escorri o bacalhau, retirei-lhe as peles e as espinhas e desfi-lo em pequenas lascas que coloquei numa panela funda, cobri-a com leite bem quente e deixei ficar em infusão por três horas. Enquanto isso, cortei as cebolas em rodelas e o dente de alho e levei a alourar ligeiramente numa frigideira de ferro com um trisco de azeite até que ficassem translúcidas e levemente amarronzadas, em seguida juntei as batatas, que haviam sido cozidas com a pele e depois peladas e cortadas também em rodelas, e juntei o bacalhau escorrido, mexi tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar, temperei com sal e pimenta, coloquei num tabuleiro de barro e levei-o a um forno bem quente durante quinze minutos, o Joaquim deixa ficar vinte, mas eu prefiro quinze minutos, com o forno a duzentos graus. Depois que tiro do forno deito-lhe salsa picada e enfeito-o com rodelas de ovo cozido e azeitonas pretas. É somente para oito pessoas. Não gosto de fazer em grande quantidade.»
«E se mais pessoas pedirem?»
«Eu digo que acabou. E se o Zé do Pipo e o João do Buraco também tiverem acabado, pois deles também não faço muita quantidade, há sempre a possibilidade de se preparar um bacalhau na brasa, com batatas e ovos. Isso é rápido, eu já tenho as postas de legítimo Porto Imperial preparadas para assar.»
O bacalhau, que comemos acompanhado de um bom Alvaralhão, estava uma delícia. (...)"

Não sei onde o autor foi buscar a receita que, não andando longe da original (como Olleboma a cita e José Quitério confirma citando Alfredo Morais), dela diverge no essencial que é o modo de cozedura: o bacalhau é cozido num tacho deitando-se sobre ele água a ferver, abafando-o com a tampa e um cobertor durante quinze minutos e só depois é lascado e colocado em leite quente para o amaciar ainda mais. 

Louve-se a divulgação deste Gomes de Sá em terras onde, infelizmente, o destino mais consagrado para o fiel amigo é o tacho do bacalhau-com-batatas-e-couve e aproveite-se a edição portuguesa para descobrir um dos mais importantes autores contemporâneos do Brasil.


Notas:

- Consta que o "João do Buraco" foi um português emigrante no Brasil que por lá criou esta receita (uma variante de empadão com camarões e ameijoas);
- "Alvaralhão" não é gralha nem avô do Alvarinho - é vinho maduro tinto de Portugal; originalmente, o vinho tinto elaborado a partir da casta homónima

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