Releio com alguma nostalgia estes parágrafos de Ramalho. Não é dos costumes ou tradições, já que as preferências dos lisboetas não parecem ter mudado tanto assim em cento e vinte anos. Também não é de uma Praça da Figueira que caiu decrépita. É sim de um tempo em que havia variedade e diversidade - ia-se aos talhos, às salsicharias, a confeitarias e mercearias, cada uma com o seu atendimento conhecedor e pessoalizado, discutir-se-iam méritos e deméritos de enchidos e criações. E é sobretudo de um tempo onde era ainda forte a produção alimentar nacional - basta bisbilhotar as etiquetas da maior parte das vitualhas disponíveis no presente para entender algumas das razões que explicam a crise actual.
"Lisboa prepara neste momento a sua festa de Natal. (...)
Lisboa, princípio do século XX: perus à venda para o Natal (Autor: Paulo Guedes ; fonte: Arquivo Fotográfico Municipal) |
Galegos transportam casais de perus ou de patos, caixotes de vinho, ou cestos etiquetados do caminho de ferro, cobertos de uma capa de pano cosido e sobrescritado, contendo os presentes da província, em ovos, em caça, em capões e em pão-podre.
As confeitarias exibem toda a sua colecção completa de doces de ovos: as queijadas, os morgados, os fartos e as lampreias espapadas, de grandes olhos de ginja e de línguas de cidrão saindo para fora de bocas de caramelo e de chocolate. Torrentes de ovos de fio brotam de rochedos de nogada, cobertos de chalets de massa, sobre tanques de torrão de Alicante, em que se abeberaram pombas de rebuçado e boizinhos de pão-de-ló com chavelhos de açúcar e entranhas de creme.
Confeitaria e pastelaria de José Rodrigues Pires - Lisboa, inicio sec XX Autor: Joshua Benoliel ; Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal |
Nas grandes mercearias galos de figo, malhados de amêndoa, estendem o seu bico discreto, de pinhão, para os bambolins de chouriços de Arraiolos encanastrados de louro. Bocetas abertas patenteiam através da trabalhosa renda de papel os discos compactos da laranja recheada de Setúbal e da ameixa de Elvas coberta de açúcar e marchetada de estrelas de fio de prata. Novas bolachas denominadas António Maria representam em massa de biscoito de água e sal as cabeças de todos os personagens célebres da política contemporânea. Caixas de figos do Algarve, bordadas a pita (...)
Nas vitrinas das salsicharias o chouriço de sangue enrola-se em círculos sobrepostos como as roscas da serpentina num alambique de ébano. Entre as formas marmoreadas da cabeça de porco com geleia e os pãezinhos de manteiga fresca, ostentam-se os fiambres de empunhadura de papel com topes recortados, as galantinas cercadas de verdura, e as pirâmides louras dos chispes panados, dos pesunhos de recheios, dos cervelas e das linguiças.
Os restaurantes empilham em exposição as perdizes, as galinholas, os patos bravos, os pastelões de presunto e vitela, os timbales de frango misturados de champignons e de rabiolos, e os ventres lourejantes e amanteigados dos perus embutidos de trufas, no meio de gargalos de prata do champanhe e das garrafas pretas do Borgonha lacradas de verde.
As padarias francesas exibem provisões extraordinárias de brioches e de pain d'épices.
As padarias inglesas instalam a grande exposição especial dos christmas-cakes, dos mince-pies, dos plum puddings e de tudo mais quanto o estômago inglês precisa for keeping a merry Christmas.
Praça da Figueira - carne 1907 Autor: Joshua Benoliel ; Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal |
Na Praça da Figueira, num movimento extraordinário de apetites em circulação, grunhem os leitões, cacarejam os galos e berram alvoraçados os marrecos e as galinhas, erguidos pelas asas e arrepiados nas penas do peito pelo sopro dos compradores. A caça pende em bambolins ao longo das barracas e enquanto coelhos mansos, suspensos pelas suas pernas, expiram fulminados com a pancada seca dada com a mão em trave sobre as orelhas, cordeiros e cabritos esfolados enxugam ao ar, abertos de cima a baixo, com um caniço em cruz metido no ventre. (...)"
(Ramalho Ortigão, A festa do Natal - a festa das crianças e a história de uma que se não divertiu, in Gloria in Excelsis Histórias Portuguesas de Natal, Ed. Público, 2003)
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