Querida Mô,
Que mulher formidável deve ter sido essa Tia Gertrudes que animou o estômago de todos quantos lhe demandaram a tasca pelos meados de Oitocentos! Formidável, sim, para deixar rasto em crónicas e croniquetas da cidade durante pelo menos meio século, formidável ela e os seus petiscos. Oficiava no "Perna de Pau", nas proximidades do apeadeiro do Areeiro, rodeada por muito campo do que eram então os arrabaldes e tinha fama a casinha. Para mim é difícil imaginar o Areeiro como "campo" e, no entanto, foi-o até aos anos quarenta do século XX. Assim como o Campo Grande ou os Olivais.
Areeiro; ao fundo o Perna de Pau - aa Eduardo Portugal, 1940 (Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa) |
Os petiscos eram bons, como ainda hoje a tradição manda que sejam bem puxados nas poucas tascas que sobram. Mas suspeito que não passavam de subterfúgios para se experimentar (longamente!) o vinho da casa. Sítios havia - como a Quinta de S. Vicente em Telheiras, onde era hábito levar-se o farnel, assentar arraiais nos bancos de madeira corrida ou nas cadeiras toscas à volta de uma mesa e só se encomendar as bebidas, pirolitos para os catraios, jarros de tinto para os adultos.
Até há poucos anos, resistia na cidade uma espécie de último moicano dos retiros, o Quebra-Bilhas (curiosamente recrismado "Antigo Retiro Quebra-Bilhas"; pergunto-me porque desistiram os donos de o manter como "retiro").
Antigo Retiro Quebra Bilhas aa Judah Benoliel, 1959 (Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa) |
A primeira vez ainda comi sob a latada, num Verão de ananases, uns pasteis de bacalhau com arroz de tomate bem dentro da tradição do bem fazer lisboeta. Mas já fechou. Ainda lá estão as paredes, como tudo nesta cidade a definhar lentamente. Penso no "Manuel dos Passarinhos", no caminho para o cemitério do Alto de S. João que - marketing avant la lettre - pintou na fachada "Não se esqueçam na volta"
Retiro do Manuel dos Passarinhos aa Joshua Benoliel, inicio do século XX (Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa) |
ou no "Caliça" no meio dos campos da Falagueira, afamado pelos fados,
Retiro do Caliça aa Paulo Guedes, 1904 (Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa) |
e acho que há uma Lisboa que se perdeu de vez. Não a dos sítios que a História é feita disso mesmo. A dos afectos pela tradição culinária.
Peregrinar até ao campo para celebrar a vida com comida e vinho - não um vinho qualquer, não uma comida qualquer, antes o petisco desta, o vinho daquele - oh, o lisboetazinho contemporâneo já se esqueceu o que isso é.
SOPA À TIA GERTRUDES DO "PERNA DE PAU"
250 gr de carne de vaca cortada em pedacinhos; 1 dl azeite; 1.5 l água; 100 gr. macarrão; sal, pimenta
Frita-se a carne no azeite. Retira-se o máximo da gordura para uma panela, onde se ferverá o macarrão. A carne será acrescentada quando a massa estiver cozida.
Fácil, despachado, nutritivo. Devia ficar muito bem a fazer cama para o tintinho.
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