terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gastroescritas - Ljubomir papa tudo, tudo, tudo

Porque nos condenamos a só nos descobrirmos pelos olhos dos estrangeiros?

Perante essas dicotomias fortíssimas, de sermos fortes lá fora naquilo que nos enfraquece cá dentro e de não credibilizarmos o que cá dentro é feito em detrimento do mesmo que nos entra pela fronteira, como poderemos algum dia sair deste apertado colete que nos condiciona presente e futuro?

Foram estas as primeiras ideias que me surgiram enquanto folheava o nóvel livro do Ljubomir Sem Maneiras Stanisic.


Logo a seguir pensei  o que os antigos me ensinaram: que, sendo a história da arte o registo da contínua oposição entre Apolo e Dionísio, entre a contenção e a explosão, entre o interiorizar e o exteriorizar, o barroco é um dos cumes da supremacia do segundo. Terá direito a todas as censuras do mundo, pelo pecado da soberba, pela ânsia de a todos querer agradar, colocando camada sobre camada de pormenores, pela maníaca obsessão em acrescentar algo mais, retocar ainda mais, pormenorizar ainda mais; mas que magnífica adrenalina para todos os nossos sentidos, que estimulação infindável, que prazer da descoberta continuamente renovado!

Graficamente, este Papa Quilómetros é completamente barroco: excessivo, cada página é uma exaustão de imagens, de letterings, de fontes, desenhos, anotações, esquemas, cores, grafismos e muito mais, de acordo com o que parece ter sido a vontade de cada momento ou a inspiração de cada local, cada ingrediente, cada prato, cada companhia. O que não é forçosamente mau. A mim estimula-me. Mas acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser extenuante e exigir descanso.

Graficamente.

Tematicamente, é um deleite, um prazer, uma agradecida e bem vinda descoberta (ou redescoberta) de locais, usos e ingredientes que - e aí volto à primeira ideia revelada atrás -, pelos vistos, só os estrangeiros que por nós se perdem (veja-se o trabalho do Aimé Barroyer) parecem saber descobrir e dar relevância.

Dez locais revelados, experimentados, vividos, eu diria tutaneados, pelo chef e sua equipa (a jornalista/cronista/memorialista, o fotógrafo, o designer, o ilustrador, o estojo das facas), do Gerês à Ilha do Farol, de Chaves a Vila do Bispo. Nativos ingredientes, das molejas de vitela barrosã ao sarrajão olhanense, da carqueja aos abrunhos, da lambujinha  ao funcho do mar. Gente, amigos, entusiastas, investidores loucos na actividade de risco que é viver da agricultura, da pesca, da agricultura biológica, do turismo rural.

Um país que nos comove por ainda existir apesar da modernidade novo-rica e industrial que nos atacou desde há umas décadas, um país que ainda nos relembra que há mais vida para além das políticas.

A completar, oitenta receitas que não são nem originais nem cópias, antes recriações de todo o mundo que o chef já viveu, das sopas de cavala às caldeiradas, do xarém de ovas de polvo ao kadum butic, do arroz de carqueja ao arroz de pata, da aletria de tinta de choco às migas com lambujinhas, da requeijada ao gelado com queijo de figo.

Assim houvessem muitos, para nos alegrar vista e alma e mais nos incentivar à redescoberta e reanimação de um país, o nosso país.

PAPA QUILÓMETROS, Uma Caminhada pela Gastronomia Portuguesa, Ljubomir Stanisic, Ed. Casa das Letras, 2011

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