José Maria entrou apressado, o lenço de desembaciar frenético em cuidadosa limpeza do monóculo. Era Lisboa e não chovia, uma nota rara nas últimas semanas do final de Outono. Um ferro, meninas, um ferro!, atirou enquanto, com o olhar míope, logo composto pela adição da lente, circulava a cozinha. Um trânsito infernal, parece que tout Lisbonne convergiu para o Chiado, continuou. Deixei o taxista a falar sózinho junto à minha estátua e aventurei-me rua do Alecrim acima com este saco pesadíssimo de material. Onde pára um novo Rosa Araújo para nos rasgar boulevards em larguras dignas? Quando era novo ainda os americanos tinham as costas largas por impedirem as corridas às caleches, agora...
Interrompeu-se no acto de levantar uma tampa. O vapor atingiu-o em cheio, enfoscando-lhe o entontecido monóculo. Ahhh!..., meu querido Jacinto se aqui estivesses! Isto não é uma canja, meninas, isto é... isto é... perdia-se enquanto aspirava guloso, isto é o quê? É o meu estômago a pedir uma malga! A exigir uma malga, uma tijela, um prato fundo que eu não vou esperar pelos convivas! A minha correspondência por duas conchas desta criação!
Enquanto as meninas apressadas - embevecidas, ternurentas, cativadas desde há muito pelo menino - corriam atrapalhando-se mutuamente à procura da malga, da tijela, da concha, da colher, perdia-se já este no destapar do restante trem colocado em fervuras várias sobre o fogão. O que é isto? Favas? Ai Jesus que me estragam com mimos! E à algarvia, onde nunca fui mas de onde me surgiram ecos infindos quando em Évora tirocinava como jornalista. A D. Maria José, a quem me apresentou o Fradique, já lá vão tantos Verões, fazia umas favas sem rival, aprendidas nessa lonjura henriquina...
E isto - mais favas? A minha Tormes que a não visito há meses... Trago umas garrafas da colheita do ano passado, ficou de estalo, pena não se poder fazer mais, ah, a Europa, essa senhora que nos embevece e atraiçoa, porque havemos de nos deixar limitar na produção vinícola... Quedou-se mudo, pela primeira vez, ele e o pensativo monóculo numa evocação interior comum. José Maria sentado no alpendre a ver as fileiras de vinha, o azul estival de Tormes, os cantos longínquos de pássaros e gentes, naquele momento o seu mundo deixara de ser a língua portuguesa para se aninhar entre as graníticas paredes desse refúgio minhoto que emprestara a Jacinto para os primeiros anos de Portugal.
Pareceu acordar. Então não se faz nada nesta cozinha, cresceu, esbracejando para as meninas que, paradas, lhe respeitavam o momento de reflexão. Talvez se o Zézinho começasse a laborar, atirou-lhe Alexia, matreira, a preparar a travessa do bacalhau para o forno,
onde está esse celebrado maçarico que tanto nos cantou, a última maravilha dos Campos Elíseos, o nec plus ultra dos enrubescedores de leite creme?
José Maria franziu o sobrolho. Não gostava das palavras inventadas por outrém. Tirou o maçarico de cozinha do saco depositado no centro do aposento. Logo lhe passou o amuo quando lhe puseram à frente um robusto prato de amarelo creme. O açúcar! Venham de lá esses grãos! Ah abade que o teu pudim é nada perante este brilho!
Cinco minutos e várias queimadelas depois já o solicitava Cristiana. E o sifão, trouxe o menino o sifão para aquela coisa maravilhosa com que costumamos brindar?
Saiu o sifão do saco. Que acolheu um xarope feito com 6 colheres de açúcar e três claras e meia garrafa de... Alexia, linda, o que é que a menina cá tem para pormos hoje no sifão? ... cachaça (cachaça? desde quando José Maria oficiou pelos Brasis? afinal estes são os domínios de Tormes ou de Prazins?) e o sumo de dois limões e mais uma carga que tudo transformou numa espumosa e elevamente tóxica caipirinha que não chegou à hora do jantar e da qual o único registo que sobrou foram os alinhavados limões.
Enquanto a espuma caipira animava todos os oficiantes na cozinha, um espiritual cheiro dimanava do forno, onde lombo e batatas tostavam em comunhão. Que belo local para todos os conselheiros deste país, pensou José Maria, bem quentinhos e apertadinhos, sem espaço para apartes e conselhos e consultorias, a dádiva resumida ao perfumado aroma da sua carne a tostar... Estremeceu. O humor da velha Albion ainda te não deixou, tantos anos depois de Bristol, talvez não lhes ficasse mal uma reduçãozinha... Casquinou.
E eis que chegavam os primeiros convivas.
Cristiana aproveitou a diversão para desembalar o seu bolo de farinha integral e sementes de sésamo e escapulir-se para a sala, escapando à inevitável inquirição do monóculo (fat free, meat free, life free? pour moi?)
Ao passar no corredor, José Maria apaixonou-se. Uma bela rosa erigia-se em altar à dona da casa, trazida por uma das visitas. Por momentos confundiu naturezas e pensou-se àquela beira-rio, cortejando. Por um breve instante a sua mão aproximou-se da flor, numa decidida tentação de a colocar à lapela. Sempre um dandy...
Os ovos! Os ovos com chouriço que tantas noites nos aconchegaram em Coimbra! Todos à volta da mesa, já, e que nos faltavam os ovos! Alexis, onde o chouriço - que é isto??? Chouriço, meu príncipe das letras, meu conde do Douro vinhateiro, meu imperador gastronómico... chouriço já passado pela máquina de moer, pronto para a fusão com os tétés...
José Maria suspirou. Se Jacinto, estóico, ultrapassou a primeira noite em Tormes, também os meus ovos brilharão em tão estranha companhia... Valha-me a divina mão que colocou advertida, uma morcela no saco!
Minutos depois, fumegantes travessas invadiam a sala, olorando-a do celestial perfume.
Ovos com chouriço, a comida de lupanar que tão bom nome deu a tão desnomeadas damas! Cruginhas! À falta de um fado que seria de tom menor, não nos quer a menina tocar como introdução os primeiros acordes da sonata pateta? Vá lá, não faça essa cara nem se faça de diva...
Debalde. A Cruginhas, amuada, remetera-se às iguarias expostas sobre a mesa.
Interrompeu-se no acto de levantar uma tampa. O vapor atingiu-o em cheio, enfoscando-lhe o entontecido monóculo. Ahhh!..., meu querido Jacinto se aqui estivesses! Isto não é uma canja, meninas, isto é... isto é... perdia-se enquanto aspirava guloso, isto é o quê? É o meu estômago a pedir uma malga! A exigir uma malga, uma tijela, um prato fundo que eu não vou esperar pelos convivas! A minha correspondência por duas conchas desta criação!
Enquanto as meninas apressadas - embevecidas, ternurentas, cativadas desde há muito pelo menino - corriam atrapalhando-se mutuamente à procura da malga, da tijela, da concha, da colher, perdia-se já este no destapar do restante trem colocado em fervuras várias sobre o fogão. O que é isto? Favas? Ai Jesus que me estragam com mimos! E à algarvia, onde nunca fui mas de onde me surgiram ecos infindos quando em Évora tirocinava como jornalista. A D. Maria José, a quem me apresentou o Fradique, já lá vão tantos Verões, fazia umas favas sem rival, aprendidas nessa lonjura henriquina...
E isto - mais favas? A minha Tormes que a não visito há meses... Trago umas garrafas da colheita do ano passado, ficou de estalo, pena não se poder fazer mais, ah, a Europa, essa senhora que nos embevece e atraiçoa, porque havemos de nos deixar limitar na produção vinícola... Quedou-se mudo, pela primeira vez, ele e o pensativo monóculo numa evocação interior comum. José Maria sentado no alpendre a ver as fileiras de vinha, o azul estival de Tormes, os cantos longínquos de pássaros e gentes, naquele momento o seu mundo deixara de ser a língua portuguesa para se aninhar entre as graníticas paredes desse refúgio minhoto que emprestara a Jacinto para os primeiros anos de Portugal.
Pareceu acordar. Então não se faz nada nesta cozinha, cresceu, esbracejando para as meninas que, paradas, lhe respeitavam o momento de reflexão. Talvez se o Zézinho começasse a laborar, atirou-lhe Alexia, matreira, a preparar a travessa do bacalhau para o forno,
onde está esse celebrado maçarico que tanto nos cantou, a última maravilha dos Campos Elíseos, o nec plus ultra dos enrubescedores de leite creme?
José Maria franziu o sobrolho. Não gostava das palavras inventadas por outrém. Tirou o maçarico de cozinha do saco depositado no centro do aposento. Logo lhe passou o amuo quando lhe puseram à frente um robusto prato de amarelo creme. O açúcar! Venham de lá esses grãos! Ah abade que o teu pudim é nada perante este brilho!
Cinco minutos e várias queimadelas depois já o solicitava Cristiana. E o sifão, trouxe o menino o sifão para aquela coisa maravilhosa com que costumamos brindar?
Saiu o sifão do saco. Que acolheu um xarope feito com 6 colheres de açúcar e três claras e meia garrafa de... Alexia, linda, o que é que a menina cá tem para pormos hoje no sifão? ... cachaça (cachaça? desde quando José Maria oficiou pelos Brasis? afinal estes são os domínios de Tormes ou de Prazins?) e o sumo de dois limões e mais uma carga que tudo transformou numa espumosa e elevamente tóxica caipirinha que não chegou à hora do jantar e da qual o único registo que sobrou foram os alinhavados limões.
Enquanto a espuma caipira animava todos os oficiantes na cozinha, um espiritual cheiro dimanava do forno, onde lombo e batatas tostavam em comunhão. Que belo local para todos os conselheiros deste país, pensou José Maria, bem quentinhos e apertadinhos, sem espaço para apartes e conselhos e consultorias, a dádiva resumida ao perfumado aroma da sua carne a tostar... Estremeceu. O humor da velha Albion ainda te não deixou, tantos anos depois de Bristol, talvez não lhes ficasse mal uma reduçãozinha... Casquinou.
E eis que chegavam os primeiros convivas.
Cristiana aproveitou a diversão para desembalar o seu bolo de farinha integral e sementes de sésamo e escapulir-se para a sala, escapando à inevitável inquirição do monóculo (fat free, meat free, life free? pour moi?)
Ao passar no corredor, José Maria apaixonou-se. Uma bela rosa erigia-se em altar à dona da casa, trazida por uma das visitas. Por momentos confundiu naturezas e pensou-se àquela beira-rio, cortejando. Por um breve instante a sua mão aproximou-se da flor, numa decidida tentação de a colocar à lapela. Sempre um dandy...
Os ovos! Os ovos com chouriço que tantas noites nos aconchegaram em Coimbra! Todos à volta da mesa, já, e que nos faltavam os ovos! Alexis, onde o chouriço - que é isto??? Chouriço, meu príncipe das letras, meu conde do Douro vinhateiro, meu imperador gastronómico... chouriço já passado pela máquina de moer, pronto para a fusão com os tétés...
José Maria suspirou. Se Jacinto, estóico, ultrapassou a primeira noite em Tormes, também os meus ovos brilharão em tão estranha companhia... Valha-me a divina mão que colocou advertida, uma morcela no saco!
Minutos depois, fumegantes travessas invadiam a sala, olorando-a do celestial perfume.
Ovos com chouriço, a comida de lupanar que tão bom nome deu a tão desnomeadas damas! Cruginhas! À falta de um fado que seria de tom menor, não nos quer a menina tocar como introdução os primeiros acordes da sonata pateta? Vá lá, não faça essa cara nem se faça de diva...
Gostei!! Desconcertante!
ResponderEliminarJá não há gastrojantares.....
ResponderEliminarEstranhas formas de vida.....