Pela mão de Cyril Devilliers, continua formosa e bem segura a cozinha do Ipsylon, o restaurante do hotel Oitavos, no Guincho.
Continua igualmente a ser um mistério para mim, porque é que o seu sucesso permanece maioritariamente nas mãos dos visitantes estrangeiros enquanto propostas relativamente próximas e de qualidade muito menor, continuam com a procura em alta. Será que, ainda hoje, um hotel continua a ser intimidante para quem busca um espaço restaurativo de qualidade?
É uma pena. O percurso do chef francês que conta no seu extenso currículo com um tirocínio português no Eleven como
chef residente e posterior passagem no Ritz Carlton Penha Longa Hotel tem sido de uma consistência evolutiva que vale a pena conhecer. Na carta de Inverno manteve a sua linha de síntese atlântica, da Normandia a Portugal, recorrendo à sua sólida formação técnica e a um bom leque de produtos de alta qualidade (muitos nacionais), dispondo-se ainda à inovação na combinação de modos e temas de várias origens.
Recentemente tive a oportunidade de experimentar alguns dos pratos mais emblemáticos da temporada, numa tarde muito pouco evocadora da estação - estava um magnífico dia de céu limpo e Sol esplendoroso - mas que aconchegou muito bem o repasto, realçando a vista marítima que a fachada de vidro do edifício permite desfrutar.
Sucessor do
cachocroute que a displicência dos visitantes terminou, o
Hot-dog merguez e batata palha caseira foram um bom início. Contrastes de texturas e gostos a complementarem-se e a competirem pela nossa atenção sem desequilibrarem o todo.
Com origem no Norte de África, a salsicha
merguez está bem difundida em França, tanto pela comunidade emigrante como pelos ex-
pieds-noirs (e peço desculpa se o termo é mais ofensivo do que me parece ser). Fortemente condimentada (esta com coentros em grão, cominhos, pimenta de espelette, paprika, sal e pimenta), com uma mistura de carne de cordeiro e novilho, é emblemática da região mas, obviamente, tem o defeito dos fortes: incomoda quem se orienta por mares culinários mais tranquilos. O guacamole surge assim como - pelo menos pela textura e frescura - um apaziguador (pela untuosidade do abacate, pela frescura do sumo de lima e dos coentros) a que se junta o crème fraiche. Caminhos de acidez (o pão também, claro) que me parecem contrastar com a gordura frita das batatas e das cebolas em polme e que, noutro compasso, são pontuados pelo atrevido -
petite! - picante dos rebentos de coentros e rabanetes (aqueles que não iam à mesa do rei...).
Visualmente equilibrado - não sei se por ser português, agrada-me a conjugação de complementares vermelho-verde - tem um forte apelo a uma imediata dentada que confirma a suculência. Começa-se bem, e podia continuar-se só neste registo, fim de tarde fora, a olhar o mar e a loira gasosa e borbulhante (weissbier! weissbier!) complementar com a companhia.
O
Portobello grelhado, ovo meurette, lascas de foie-gras é uma combinação de sabores fortes, invernais, cheios dos aromas da terra. Visualmente é como a natureza, indomável, incongruente, múltipla e díspar. Estranha-se a falta de uma história até se perceber que a história está na heterogeneidade das formas que se ligam à complementaridade dos sabores - as fatias de cogumelo na base (húmus no prato e na boca, a grelha e um tempero leve e clássico de azeite, sal e pimenta), a macieza e humidade do toucinho italiano (
lardo di colonnata), leves, tão leves quanto o seu derreter na boca, as arestas da chicória, as finíssimas lascas de foie gras, o vermelho vivo do rábano, o vermelho já roxo da roxa cebola, o tom de vinho do ovo escalfado em vinho tinto e que inunda de amarelo brilhante todo o prato quando se abre e pede - exige! - o uso do pão saloio torrado. Notas de canela e nozes, estragão e cerefólio. Como um peça orquestral, a ser serenamente consentida, instrumento a instrumento, compasso a compasso. Como um passeio pelo bosque, feito em silêncio e cheio dos seus ruídos, aromas, visões.
Com uma nota ainda mais rústica, a
Costeleta de porco preto, beringela fumada, morcela picante, paio de toucinho e maçã começa por surpreender pela ousadia de se apresentar mal passada, opção declaradamente assumida pelo chef para não deixar secar tanto a peça como aconteceria numa cocção mais tradicional. Habituados que somos ao mito da carne de porco obrigatoriamente bem passada, esta opção admira-nos. Mas que resultado final!
A cozedura em vácuo amacia a carne como em nenhuma outra técnica, deixando-a à beira do amanteigado que quase se dissolve na boca sem intervenção humana.
A acompanhar, mais notas de substância, um
boudin antillais cortado com maçã, toucinho fumado adocicado pelas vizinhas cenouras amarelas e roxas. Feijão verde e couve lombarda. Vermelhos e verdes a tentar sobressair no generalizado tom ocre.
Para terminar, uma ousadia múltipla:
Cabeça de cherne em Zamaca, molho teriaki, noodles.Porque uma cabeça de cherne é um objecto sagrado do qual muitos culinariamente se aproximam com reverência, admitindo apenas uma cozedura a preceito ou um contacto preciso com a grelha, esta é uma aposta de algum risco. Que bela cabeça de cherne!
Acondicionada na zamaca, coberta do meloso molho teriaki, escalada, fez-me sentir um émulo do
Andrew Zimmern, a provar uma metamorfose desconhecida do cherne, à maneira das sentidas por todos os peixes-chatos. Impressão aumentada quando, com a pressão do corte, todo o maravilhoso colagénio do interior se desprendeu no molho. Ah, mas o sabor daqueles pedaços de carne, o agro-doce do molho!
Não é para todos mas garanto que quem o arriscar pedir não sairá defraudado.
Alguma estranheza no acompanhamento - que me parece de influência chinesa e, portanto, algo deslocado numa preparação que vai beber o fundamental à cozinha japonesa - que é atenuada pela qualidade na confecção.
No capítulo sobremesa que tanto no passado me tem entusiasmado, alguma desilusão. Preparações em alta, claro, como não poderia deixar de ser, mas estacionadas no tempo: onde a criatividade, onde o cuidado na apresentação do conjunto?
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Finger de praliné avelã |
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Chocolate com amendoim e toffee |
Belas combinações de sabores, desconstruções inteligentes, mas a
verve, a surpresa, o ah! de agrado e de espanto... ausentes. Um trabalho realizado perfunctoriamente. Que pena.
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Amêndoa em creme e pêra em sorvete com amaretto |
Ipsylon: é de ir e voltar.
Ipsylon RestauranteHotel The Oitavos
Rua de Oitavos, Quinta da Marinha, 2750 – 374 Cascais
Tel.: +351 214 860 020
GPS: 38º42’14.68” N; 9º27’59.73” W