sábado, 30 de março de 2013

Novos tempos

Gastrónomo era, ouvi há dias  ao Eng. Bento dos Santos, numa boutade que apreciei, todo aquele que tinha dinheiro para comer caviar e beber champanhe - e o fazia.

Ah, bons tempos esses, em que o nome de família ou a patine dourada do cartão de crédito eram suficientes para o grau de doutor em ciências gastronómicas! Bons tempos em que, tratar por tu os grandes chefes da Europa garantia peroração mediática e ofício semanal nas páginas de referência do país... Bons tempos em que a qualidade da restauração se media pelo número de zeros necessários para pagar a despesa e caro era o claro objecto do desejo de muitos.

Good old days, quase arredados deste presente de chumbo e de lata. Páginas de gastronomia preenchidas com receitas de estrelas internacionais que nem cuidam de verificar se os ingredientes mencionais se encontram disponíveis no país, o grande Quitério encafifado em meia página par e a maioria dos grandes restaurantes à caça de um pingente de ar em luta desesperada pela manutenção.



Escrever sobre restaurantes é, no presente, uma interrogação. A que leitores nos dirigimos - à minoria que mantém o orçamento do passado ou à esmagada maioria que vê desaparecer disponibilidades? Qual o objecto do nosso desejo - o atingível ou o sonhado?

Procurar os melhores caviar e champanhe é ainda o nec plus ultra de uma gastronomia actual?

quinta-feira, 28 de março de 2013

Peixe em Lisboa 2013

Vão-se os idos de Março, chega a Primavera e Lisboa, apesar da chuva dissolvente, engalana as suas papilas para mais uma edição do Peixe em Lisboa.



Novamente instalada no Pátio da Galé, no Terreiro do Paço (é politicamente incorrecto continuar a usar a toponímia monárquico-absolutista?), irá decorrer de 4 a 14 de Abril e, para além das propostas culinárias dos restaurantes residentes, cria expectativas para algumas das acções programadas.

A começar pelas apresentações de cozinha ao vivo - 20! -, onde teremos oportunidade de conhecer as visões de vários chefs internacionais: Pepe Solla (Casa Solla, Pontevedra, *M), dia 12, às 19:00; Bella Masano (Amadeus, São Paulo), dia 6, às 16:00, Virgílio Martinez (Central, Lima, e restaurante Lima, Londres), dia 5, às 19:00, Adrien Trouilloud (Rech, Paris), dia 7, às 18:30 e o italiano Mauro Uliassi (Uliassi, Ancona, **M), dia 8, às 19:00 e comprovar - ou descobrir - a evolução de alguns dos melhores oficiantes nacionais: José Avillez (Belcanto, Lisboa, *M), dia 10, às 19:00; Vitor Matos (Largo do Paço, na Casa da Calçada, Amarante,*M), dia 9, às 19:00; Alexandre Silva (Alentejo Marmòris Hotel & Spa, Vila Viçosa), dia 11, às 19:00, Bertílio Gomes (Chapitô à Mesa, Lisboa), dia 7, às 16:00, Marlene Vieira (Avenue, Lisboa), dia 13, às 19:00, Tomoaki Kanazawa (Tomo, Algés), dia 13, às 16:00


e Vitor Sobral (Tasca da Esquina, Cervejaria da Esquina, Lisboa), dia 14, às 15:00.

No dias 6, às 18:30, uma apresentação conjunta original e que juntará alguns “número 2” de restaurantes de primeira grandeza subordinada ao tema "A Cavala", peixe que de menor só tem o preconceito que o cerca.

Yoji Tokuyoshi, subchefe Osteria Francescana, Modena (Itália), *** M, Matteo Ferrantino, subchefe Vila Joya, Algarve, ** M, Florian Rühlmann, suchefe The Ocean, Algarve, ** M, Leandro Carreira, subchefe Viajante, Londres, * M, David Jesus, subchefe restaurante Belcanto, Lisboa * M, João Rodrigues, subchefe Feitoria, Lisboa, * M, são os convidados. Veremos quanto do seu pensamento está incorporado nas artes dos restaurantes "mãe".  Paralelamente, serão realizados, pelos mesmos, dois jantares na Cantina da Estrela.

Finalmente, para cada uma das estações do ano, haverá uma apresentação seguindo o tema "Fruta em Lisboa nas 4 Estações" na qual se juntarão os sabores e saberes de um chef e de vários especialistas:

"OUTONO", dia 5, às 15:00
Fausto Airoldi, Cristina Oliveira (Professora de Fruticultura do ISA), Alexandra Vieira (Segurança Alimentar), Vasco Veiga (Sortegel), ANP - Associação Nacional de Produtores de Pêra Rocha

"INVERNO", dia 8, às 15:00
Nuno Diniz (York House, Lisboa), Cristina Oliveira (Professora de Fruticultura do ISA), APMA - Associação de Produtores de Maçã de Alcobaça

"PRIMAVERA", dia 9, às 15:00
Nuno Barros (1300 Taberna, Lisboa), Cristina Oliveira (Professora de Fruticultura do ISA), Alexandra Vieira (Segurança Alimentar)

"VERÃO", dia 12, às 15:00
Miguel Castro Silva (Largo, Lisboa), Cristina Oliveira (Professora de Fruticultura do ISA),Empresa Dona Uva

Como já referi em anos anteriores, a única pena minha é não haver bilhetes especiais para que curiosos e amadores pudessem seguir o conjunto das apresentações, sem um grande rombo orçamental. Ainda que, face às enchentes passadas, se tivesse de aumentar a capacidade do auditório...

A seguir pois, com a maior disponibilidade possível. Eu lá estarei.

segunda-feira, 25 de março de 2013

As novas tascas (I)

Para um lisboeta é um lugar comum ouvir um lisboeta dizer que Lisboa é uma terra de tascas. FOI uma terra de tascas. De tabernas, de quem se dizia serem porta sim porta não com as porta não porta sim igrejas.

É curioso usar-se a expressão "lugar comum", quando uma tasca - a tradicional, aquela com um vicente à porta, um barril ao fundo e um balcão de mármore a intermediar... não, menos, a tradicional com um ar chunga, cheiro a fritos e petisqueira que, em retrospectiva nos faz salivar e mentalmente lamber os dedos - é, hoje em dia e legislação sanitária europeizada em mente, um lugar incomum.

Zelosos e cumpridores law enforcers que se seguiram a cumpridores e zelosos legisladores fizeram por higienizar todo o tecido restaurativo da cidade: azulejaram, inoxidaram, fluorescentaram, desengorduraram, normalizaram gosto e sabor. Mataram - ou pelo menos enterraram sobre cosméticas carradas de HACCPs - esse passado que a presente ausência nos faz teimar em glorificar.

É tão português suspirar por algo que passou a bestial depois de morto.

Bom. O mundo pula e avança com toda a força do que tem de ser. E se para nós tugas, o respeitinho ainda é - pelo menos às claras - muito bonitinho, para a panóplia de imigrantes que nos enchem as ruas de colorido e os bairros populares de uma vivacidade sem IVA, o lespeitinho é coisa de gweilo.

Assiste-se assim, nessa Lisboa renovada de actividade, ao renascimento da tasca-instituição.

(Fotografia de base: Autoria - Joshua Benoliel; Arquivo Fotográfico CML)
Uma profusão quase porta sim porta não de restaurantes familiares, com cozinheiros/as de mão cheia que nos transportam às ruas de muitas das cozinhas regionais chinesas, bastando para tal deixar cair o duplo véu de desconfiança de restaurador e clientes.

Apesar dos zelos que, mais tarde ou mais cedo, hão-de cair, em mediaticamente calculadas operações, sobre estas micro-micro-micro-empresas, não tenho dúvidas de quem irá sair vencedor: o palato dos curiosos e a tenacidade dos mais teimosos.

Aqui ficam as mais recentes descobertas, experimentadas numa destas noites, algures na cidade: uma lição de gostos, texturas, equilíbrios de cores, concentrados em poucos gestos, meios económicos e simplicidade de pratos. Uma cozinha milenar ao virar das esquinas. Vale a pena conhecer, já que a nossa teima em sobreviver envergonhada, perdida em modernices que desconhecem a modernidade ou paralisada em imitações de mau tom, pouco sabor e menor amor.



Frango Kung Pao


Guotie

Pak choi e cogumelos shiitake: é difícil fazer melhor com tão pouco (tão muito?)

terça-feira, 19 de março de 2013

Três palácios reais da região de Lisboa


Curioso paradoxo gastronómico que a distribuição social da riqueza gerou, é a cozinha dos ricos que fica para a História mas é, genericamente, a cozinha dos pobres que fica na memória.

Concretizo: dos sítios, dos registos, das memórias fica‐nos o relato de hábitos alimentares, despesas com eles relacionadas, modas, modos que as classes superiores – a nobreza e o clero – mantiveram durante séculos. São essas as fontes da História, as quase únicas fontes possíveis de um passado que pouco ou nada quis registar da arraia‐miúda, precisamente porque da sua condição humana não se tinha consciência de existir. Nulidade necessária para manter os padrões de vida da classe dirigente, relegado o seu bem‐estar para um prometido paraíso post mortem, ao povo, urbano ou campesino, pouco mais durante séculos se permitiu que uma quase sempre silenciosa luta pela sobrevivência. Restou‐lhe um consolo: que, pouco a pouco, o sapiente, laborioso, imaginativo agrupar de soluções para matar a sua fome secular, arrancadas aos parcos recursos sobrantes após a rapina dos senhores, constituísse o fundamental dos hábitos culinários de uma região, um povo, uma nação.


Aos homens feitos imperfeitos e fugidios deuses ficou assim reservado o fulgor de uma vida, cristalizada, irrepetível; aos seus anónimos servos, filhos desses deuses menores, a perenidade de um conjunto de gestos, repetidos e sempre presentes, a memória quase genética que nos habita.


Visitar alguns dos Paços da região de Lisboa é dialogar com essa História registada e caminhar pela perplexidade de tomar conhecimento de algo que nos pertence – porque português – mas que nos é estranho – porque, comuns mortais, somos quem olha de fora. À maneira de Pessoa, sentimos racionalmente; está‐nos interdito invocar Homem de Mello e pensar “comi com eles na mesa, tive a mesma condição”.


Ao visitar os palácios de Sintra, Queluz e Ajuda fica‐nos – para além do prazer que é caminhar os espaços, descobrir as decorações, conhecer os artefactos – a compreensão das soluções arquitectónicas nos grandes espaços de habitação para os problemas inerentes à preparação, confecção e distribuição de alimentos. A recepção e armazenamento dos alimentos. O abastecimento de água e a drenagem da mesma após o uso (lavagens, limpeza). A exaustão de fumos. A protecção contra incêndios. A geometria e orgânica dos espaços de confecção – fogões, fornos, espetos, lareiras. Os percursos de distribuição. Os locais de consumo – salas de refeições.



Visitando-os - ou questionando-os - de acordo com a sua ocupação temporal, permite percepcionar a evolução dos gostos e das soluções.


O palácio da vila, em Sintra, com origem árabe foi residência da família real portuguesa desde o século XII. Sucessivamente ampliado por campanhas de obras ordenadas por D. Dinis, D. João I e D. Manuel I, em vários estilos arquitectónicos, a sua configuração actual não difere globalmente do fixado por este último rei, permitindo assim uma ideia consistente das soluções medievais e renascentistas relativamente às questões atrás citadas.


As duas chaminés da cozinha, ex‐libris do palácio, são o indicativo maior tanto do tipo de confecção preferencial – assados ‐ quanto da quantidade de comida assim confeccionada justificativa de tamanha dimensão de exaustão. A construção independente do resto do palácio bem como a grossura da parede meã ilustra os cuidados e o receio de incêndios, perigo real dados o tipo de materiais usados na construção e a prevalência do fogo na cozinha (ironicamente, seria um incêndio a destruir, vários séculos depois, um outro palácio real, a Real Barraca, edificação provisória de madeira (com 33 anos), determinando a construção do Palácio da Ajuda, último palácio real da monarquia portuguesa). Finalmente, o – pelo menos para o visitante moderno ‐ labiríntico percurso que vitualhas seguiriam até à sala de refeição, faz pensar ser provável a presença nesta de processos de reaquecimento da comida.


Igual separação do corpo da cozinha verifica‐se no Palácio de Queluz, construído no século XVIII. Adaptado a restaurante, a chaminé, integrada numa das salas de refeições, ainda que de notáveis dimensões é de uma escala muito inferior à das suas monumentais congéneres de Sintra. Sinal claro de uma outra atitude do cozinhar, mais apoiada na confecção de peças parciais e de preparados do que de peças inteiras dos animais. Uma cozinha que se poderá caracterizar como menos “brutalista” e mais delicada.




Infelizmente no Palácio da Ajuda não está aberta aos visitantes a possibilidade de visitar a cozinha, sendo apenas possível o contacto com as duas salas de refeições – a sala privada e a sala de banquetes. Espaços de ostentação do poder, como não poderia deixar de ser, com o acto de comer, principalmente no segundo espaço, a ser elevado a factor de representação do Estado, tanto na época monárquica como no actual regime.



Interessante este percurso, bem explicado pelo olho treinado e erudito de Virgílio Gomes, de três espaços reais sob a óptica gastronómica.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Do Gastrodré à Baixa, comé

Um percurso possível. Um contador de histórias valioso - André Magalhães. Vontade de olhar e de provar, de evocar e recriar.

Começamos como começavam quase todos os madrugadores passantes pelo Cais do Sodré: com uma bucha no quiosque e um café incrementado… com um cheirinho, como se dizia em bom lisboeta da silva dos meus tempos de Bernardim.


Cais do Sodré também de marinheiros, em demanda ávida de alimento para diversas fomes, nos tempos áureos do comércio marítimo ou da fria guerra de nervos com que terminou o aceso tráfego militar do Atlântico Norte. Em acentuada decadência o vário mercadejar da zona, atentando-nos nós no que se pode citar a todas as horas do dia sem perigo de sobrolhal censura ou de taipais cerrados pela imprópria hora da manhã.


Humildes tascas em purgatória descida, mantidas por donos de outras eras, em fim de vida ambos, sem perspectivas de continuidade.


A Casa Cid, em frente às traseiras da Ribeira, representante honesta da cozinha de mão-cheia, com oficiante destro e conhecedor e onde vale a pena abancar, sem tempo, para atentamente distraído, encher os ouvidos de histórias, de linguarejar alfacinha e da boa petiscada que ainda resiste.



Comida de rua em balcão de zinco, jaquinzinhos, torresmos, croquetes, brancos em copos de três e um sorriso satisfeito, apaziguado, beatífico.





O British Bar, que foi queirosiana Taverna Ingleza,



onde o tempo anda para trás,



escritório oficioso do José Cardoso Pires e de inúmeras dúzias de bons malandros, sede de muita sede, afogada em Ginger Beer e Altedouros, as estrelas caseiras da britânica casa.


A pastelaria Caneças.





A mercearia Cabaça de Mel, com biscoitos que foram gesta marítima e são delícia para a comunidade cabo-verdiana,



situada na travessa do Cotovelo, onde em tempos se comiam as melhores iscas com elas de Lisboa, sujeito de venerável texto de Albino Forjaz de Sampaio, gastrónomo de uma passada Lisboa que, canoa de vela erguida, nunca, nunca, nunca mais.



As lojas de secos e molhados da rua dos Bacalhoeiros, com feijões de todas as latitudes, tripa genuína para enchidos caseiros, bacalhau de cura amarela a salga de riso amarelado e peixe seco para comunidade africana consumir.



A Baixa, já ali a seguir, com os seus restaurantes galegos, ex-casas de pasto e abardinados restaurantes caça-níqueis de turistas, encantados com o decrépito very typical, história para outras histórias...

sábado, 16 de março de 2013

Carta de Inverno no Y/8ºs

Pela mão de Cyril Devilliers, continua formosa e bem segura a cozinha do Ipsylon, o restaurante do hotel Oitavos, no Guincho.

Continua igualmente a ser um mistério para mim, porque é que o seu sucesso permanece maioritariamente nas mãos dos visitantes estrangeiros enquanto propostas relativamente próximas e de qualidade muito menor, continuam com a procura em alta. Será que, ainda hoje, um hotel continua a ser intimidante para quem busca um espaço restaurativo de qualidade?

É uma pena. O percurso do chef francês que conta no seu extenso currículo com um tirocínio português no Eleven como chef residente e posterior passagem no Ritz Carlton Penha Longa Hotel tem sido de uma consistência evolutiva que vale a pena conhecer. Na carta de Inverno manteve a sua linha de síntese atlântica, da Normandia a Portugal, recorrendo à sua sólida formação técnica e a um bom leque de produtos de alta qualidade (muitos nacionais), dispondo-se ainda à inovação na combinação de modos e temas de várias origens.

Recentemente tive a oportunidade de experimentar alguns dos pratos mais emblemáticos da temporada, numa tarde muito pouco evocadora da estação - estava um magnífico dia de céu limpo e Sol esplendoroso - mas que aconchegou muito bem o repasto, realçando a vista marítima que a fachada de vidro do edifício permite desfrutar.

Sucessor do cachocroute que a displicência dos visitantes terminou, o Hot-dog merguez e batata palha caseira foram um bom início. Contrastes de texturas e gostos a complementarem-se e a competirem pela nossa atenção sem desequilibrarem o todo.




Com origem no Norte de África, a salsicha merguez está bem difundida em França, tanto pela comunidade emigrante como pelos ex-pieds-noirs (e peço desculpa se o termo é mais ofensivo do que me parece ser). Fortemente condimentada (esta com coentros em grão, cominhos, pimenta de espelette, paprika, sal e pimenta), com uma mistura de carne de cordeiro e novilho, é emblemática da região mas, obviamente, tem o defeito dos fortes: incomoda quem se orienta por mares culinários mais tranquilos. O guacamole surge assim como - pelo menos pela textura e frescura - um apaziguador (pela untuosidade do abacate, pela frescura do sumo de lima e dos coentros) a que se junta o crème fraiche. Caminhos de acidez (o pão também, claro) que me parecem contrastar com a gordura frita das batatas e das cebolas em polme e que, noutro compasso, são pontuados pelo atrevido - petite! - picante dos rebentos de coentros e rabanetes (aqueles que não iam à mesa do rei...).

Visualmente equilibrado - não sei se por ser português, agrada-me a conjugação de complementares vermelho-verde - tem um forte apelo a uma imediata dentada que confirma a suculência. Começa-se bem, e podia continuar-se só neste registo, fim de tarde fora, a olhar o mar e a loira gasosa e borbulhante (weissbier! weissbier!) complementar com a companhia.

Portobello grelhado, ovo meurette, lascas de foie-gras é uma combinação de sabores fortes, invernais, cheios dos aromas da terra. Visualmente é como a natureza, indomável, incongruente, múltipla e díspar. Estranha-se a falta de uma história até se perceber que a história está na heterogeneidade das formas que se ligam à complementaridade dos sabores - as fatias de cogumelo na base (húmus no prato e na boca, a grelha e um tempero leve e clássico de azeite, sal e pimenta), a macieza e humidade do toucinho italiano (lardo di colonnata), leves, tão leves quanto o seu derreter na boca,  as arestas da chicória, as finíssimas lascas de foie gras, o vermelho vivo do rábano, o vermelho já roxo da roxa cebola, o tom de vinho do ovo escalfado em vinho tinto e que inunda de amarelo brilhante todo o prato quando se abre e pede - exige! - o uso do pão saloio torrado. Notas de canela e nozes, estragão e cerefólio. Como um peça orquestral, a ser serenamente consentida, instrumento a instrumento, compasso a compasso. Como um passeio pelo bosque, feito em silêncio e cheio dos seus ruídos, aromas, visões.





Com uma nota ainda mais rústica, a Costeleta de porco preto, beringela fumada, morcela picante, paio de toucinho e maçã começa por surpreender pela ousadia de se apresentar mal passada, opção declaradamente assumida pelo chef para não deixar secar tanto a peça como aconteceria numa cocção mais tradicional. Habituados que somos ao mito da carne de porco obrigatoriamente bem passada, esta opção admira-nos. Mas que resultado final!




A cozedura em vácuo amacia a carne como em nenhuma outra técnica, deixando-a à beira do amanteigado que quase se dissolve na boca sem intervenção humana.

A acompanhar, mais notas de substância, um boudin antillais cortado com maçã, toucinho fumado adocicado pelas vizinhas cenouras amarelas e roxas. Feijão verde e couve lombarda. Vermelhos e verdes a tentar sobressair no generalizado tom ocre.

Para terminar, uma ousadia múltipla: Cabeça de cherne em Zamaca, molho teriaki, noodles.


Porque uma cabeça de cherne é um objecto sagrado do qual muitos culinariamente se aproximam com reverência, admitindo apenas uma cozedura a preceito ou um contacto preciso com a grelha, esta é uma aposta de algum risco. Que bela cabeça de cherne!

Acondicionada na zamaca, coberta do meloso molho teriaki, escalada, fez-me sentir um émulo do Andrew Zimmern, a provar uma metamorfose desconhecida do cherne, à maneira das sentidas por todos os peixes-chatos. Impressão aumentada quando, com a pressão do corte, todo o maravilhoso colagénio do interior se desprendeu no molho. Ah, mas o sabor daqueles pedaços de carne, o agro-doce do molho!

Não é para todos mas garanto que quem o arriscar pedir não sairá defraudado.


Alguma estranheza no acompanhamento - que me parece de influência chinesa e, portanto, algo deslocado numa preparação que vai beber o fundamental à cozinha japonesa - que é atenuada pela qualidade na confecção.


No capítulo sobremesa que tanto no passado me tem entusiasmado, alguma desilusão. Preparações em alta, claro, como não poderia deixar de ser, mas estacionadas no tempo: onde a criatividade, onde o cuidado na apresentação do conjunto?

Finger de praliné avelã

Chocolate com amendoim e toffee
Belas combinações de sabores, desconstruções inteligentes, mas a verve, a surpresa, o ah! de agrado e de espanto... ausentes. Um trabalho realizado perfunctoriamente. Que pena.

Amêndoa em creme e pêra em sorvete com amaretto
Ipsylon: é de ir e voltar.

Ipsylon Restaurante
Hotel The Oitavos
Rua de Oitavos, Quinta da Marinha, 2750 – 374 Cascais
Tel.: +351 214 860 020
GPS: 38º42’14.68” N; 9º27’59.73” W

domingo, 3 de março de 2013

Kung Hei Fat Choi!


Eu gosto de Macau. Nunca lá estive excepto em memória, muitas vezes, quando ouvia a minha professora primária receituar as províncias ultramarinas e Macau lá vinha, last but never least, ou a propósito de exílios, de Camões a Pessanha e a todos que por erros seus ou má fortuna dela fizeram o seu poiso. Não sei se era a nostalgia da distância ou o exotismo da diferença, nesse tempo tão marcada, que me aproximou do território. Só sei que gosto de Macau. Mesmo sem nunca lá ter estado.

Parece o Oriente entranhar-se em quem o vive, como a coca-cola do Pessoa, há uma nostalgia no ex-expatriado que se pressente no brilho do olhar que acompanha a langorosa saudade em que as palavras sobre o território nos chegam envoltas. A ele se retorna, sob variados pretextos.

Para celebrar a chegada do ano novo chinês ou ano novo lunar, um grupo de portugueses ligados aos últimos anos da administração portuguesa no território organiza desde há anos um jantar no Estoril Mandarim. Este ano, tive a buona fortuna de ser convidado por mão amorosa para o jantar que celebrava o início do ano da serpente.



Foi um jantar para amigos, um jantar onde o mais importante era o convívio e o reencontro de velhas amizades ou cumplicidades laborais - temperado por sabores da memória. Orgulhoso do estatuto de melhor cozinha chinesa de Portugal, o restaurante instalado no edifício do casino Estoril não deixou o crédito por mãos alheias e, apesar da "simplicidade" dos pratos, soube apresentá-los saborosos, correctos, contributivos para os risos e sorrisos satisfeitos de quem, por horas, se sentiu novamente por entre os rumores e humores da foz do rio das Pérolas.

E foi um menu em que para mim o mais notável foi a ambivalência - ou o diálogo? - entre o carácter quotidiano de cada prato e o seu carácter (quase) extraordinário em Portugal. Comida caseira em restaurante de luxo, transfigurada em comida de luxo para apaziguar saudades.

Won-ton
Sopa de milho
Destaque para as duas carnes assadas à cantonês, para as lulas fritas e para as gambas em ovos mexidos. Mouthfillers e mouthfulls.

Combinação de duas carnes assadas à cantonês


Lulas fritas com sal picante
Gambas salteadas com ovo
Galinha estufada com cebolinho e gengibre
Couve de Xangai com presunto
Arroz "chau-chau" feito à moda de Yeong Chau
Chau-min de carne de vaca com pimenta preta
Tapioca
Pudim de manga

E agora com licença que me deu a fome e vou ali comer qualquer coisa.

San Tai Kin Hong que é como quem diz, saúde e prosperidade!