sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Panorama bom, o resto mediano



No Portugal do antigamente, de pobres costumes e défice controlado, a temporada de saldos era um evento dois-em-um onde os mais remediados dos "remediados" (palavra posta em desuso pela CEE e em vias de recuperação pela UE) tinham - finalmente - oportunidade de comprar roupa nova e onde os monos de temporadas passadas encaixotados há muito nos fundos da loja, obtinham segunda oportunidade para brilhar.

Ao contrário do que cantava o Zé Mário, apesar de terem mudado os tempos, as vontades permaneceram imutáveis. Por lei, nos saldos - de roupa... - só são admitidas peças do ano,  à venda anteriormente na loja. Mas, graças a Deus, a criatividade anda sempre um passo à frente daquela e a maior parte das campanhas que por aí andam anunciadas como panaceias para o consumidor-gourmet não passam de disfarçados modos de continuar a assegurar lucros no negócio.

É a vida, pá.

Sendo a situação económica actual o que é, com a redução dos rendimentos dos consumidores, o aumento do IVA, o desapoio bancário, é segredo de polichinelo o periclitante estado financeiro da maior parte dos restaurantes. Eventos como o "Restaurant Week", com o anunciado preço de saldo (19€) para uma refeição completa, parecem ser, pelo menos teoricamente, um modo de alargar o número de consumidores, servindo como introdução do restaurante a novos entusiastas que, mesmo não frequentemente, seriam cativados para novas visitas. Instrumento valioso pois, a ser tratado com atenção e carinho.

Apesar de me parecer óbvia esta posição, o facto de ainda ter vivido o tempo dos mono-saldos, criou-me uma desconfiança de base de todas estas desprendidas ofertas: refeições em restaurantes de luxo pelo valor anunciado são como a manta do pobre - em algum lado há-de faltar alguma coisa.

Apesar disso e entusiasmado por voz amiga, decidi-me a - desta vez eu - experimentar este ano um dois-em-um: conhecer o restaurante, nas palavras da maioria dos críticos, mais injustiçado dos não-premiados pelo guia Michelin e verificar a benignidade da iniciativa.


Reserva feita para o almoço, bom atendimento, à altura dos pergaminhos, uma carta especial - e especialmente colorida. Menu fixo na entrada e na sobremesa, única opção entre o prato do lombinho de bacalhau e o de peito de "canette".




Pratos bem confeccionados mas não especialmente interessantes, muito menos entusiasmantes. Tantas refeições a suplantar esta, mais baratas, mais caras. Onde a "alta" cozinha, a "elevadíssima" qualidade? No menu de degustação, na carta fora da promoção? Qual então a mais valia para o cliente - a vista?



Como introdução soube a pouco, soube a insuficientemente pouco para desejar voltar.

No final, a resposta à dúvida inicial. Duas pessoas, dois menus (19 + 1 €), um copo de vinho, um sumo, uma garrafa de água, um café: 60 euros.

I rest my case.

domingo, 23 de setembro de 2012

Águas de bacalhau


No seu mais recente livro(*), escrito em parceria com o filósofo Daniel Innerarity, Andoni Aduriz postula que, mais além de sermos o que comemos, nós somos como comemos. "Na nossa comida quotidiana põe-se em jogo um interessantíssimo complexo de actividades culturais e sociais, um entrançado de rituais, convenções e funções biológicas, um espaço de tensão ética e política e mesmo uma concretização das realidades globais.", acrescenta por sua vez o filósofo.

Somos como comemos e no nosso acto de comer concentra-se todo o mundo. Inconscientemente, na nossa escolha, em paralelo e conjunto com milhões de outras, decide-se o destino de agricultores e produtores; de regiões e tradições; de ligações familiares, sociais, afectivas ou culturais. Num presente, em cada presente, mata-se ou reinventa-se o passado, cria-se ou ignora-se o futuro.

Todo o mundo se concentra no nosso acto de comer. Inversamente, esse acto permeia todos os aspectos da nossa vida. Prova dessa prevalência encontra-se na linguagem coloquial de qualquer cultura, impregnada de influências culinárias ou no uso, em muitas religiões, do simbolismo alimentar.


"Piece o' cake" dizem os americanos das coisas fáceis; "not my cup of tea", contrapõem ingleses acerca de algo que não agrada.

Em França, o que se vende bem, vende "comme des petits pains" (no Brasil é "como pãezinhos quentes"). E enquanto em Portugal é preciso arregaçar as mangas, na pátria da patisserie, é necessário "mettre les bouchées doubles".

Em português de Portugal, somos "cabeças de alho chocho" se não atingimos os patamares que de nós são esperados; quando deixamos o automóvel em casa ou a bicicleta na oficina viajamos "como sardinhas em lata"num obviamente "cheio como um ovo" veículo público.

(Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)
Uma confusão é, obviamente, uma "caldeirada", um preliminar de namorados, uma "marmelada". Se alguém se porta mal, prometemos-lhe arroz ("eu já te dou o arroz!") - o que, para mim é incompreensível, a menos que o espécime a ofertar seja do tipo unidos-venceremos-cheio-de-bispo-feito-pelo-cozinheiro-do-rancho-no-quartel-dos-rangers-de-lamego -, mas se a nossa ascendência fôr grande, esse alguém acabará por vir "comer à nossa mão" (efeitos, porventura, da marmelada anterior).

Metemos "a mão na massa" para fazer as coisas à nossa maneira e do nosso completo agrado mas comemos "o pão que o diabo amassou" se a vida nos foi madrasta.

Talvez a expressão que mais se adeqúe ao momento presente seja a das, outrora abundantes, "águas de bacalhau".

Sacrificamo-nos, sacrificam-nos - continua tudo em águas de bacalhau; o Governo anuncia medidas, há manifestações, recuam-se as medidas - continua tudo em águas de bacalhau; abraçam-se polícias, apupam-se polícias, cortejam-se polícias, agridem-se polícias - continua tudo em águas de bacalhau.

De onde virá esta imagem? Das águas salobrizadas pelo contacto com o salgado teleósteo, impróprias para o que quer que fosse? Ou, inversamente, da riqueza (o sal ou as expectativas) que se perde nas águas, não ficando aproveitável para nada?

É uma pena. Poderíamos encher a boca, os placards e os comunicados políticos com imagens fortes como paios, promissoras como as uvas moscatel, entusiasmantes como um cozido, galvanizantes como um vinhão. Mas não. Macambúzios como somos, encolhemos os ombros deprimidos, decidindo, como sempre, que tudo isto é para ficar, como sempre,

em águas de bacalhau.



(*) - Cocinar. Comer, Convivir - Andoni Luiz Anduriz e Daniel Innerarity, Ediciones Destino, Barcelona, 2012

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O melhor peixe do mundo? Em Tavira


Paletes.

Fossem os meus olhos brasas e a minha boca uma grelha e o mercado de Tavira ficaria transformado num aromático, tentador, mirífico expositor de irrecusáveis peixes grelhados em menos tempo que leva a dizer a palavra troika.

Oh felicidade, oh curiosidade apenas em princípio de ser satisfeita, oh regalo para a vista, oh orgulho indomável e irreprimível de ser concidadão de quem do mar recolhe tamanha maravilha e de ser vizinho de tamanho alfobre de - neste mundo e neste tempo de artifícialidades - raridades!

Pobres lisboetas orgulhosos do seu mercado da Ribeira e da proximidade do Tejo que, erroneamente, lhes faz concluir ter à porta o acesso a esta diversidade...

O Algarve não é Allgarve - é ALLFISH.


















terça-feira, 18 de setembro de 2012

Vela latina: valores seguros


O que nos leva a eleger um restaurante? O nosso estado de espírito. O nosso sentir no momento. O nosso posicionamento na vida. Estamos alegres? Especialmente apaixonados? Completamente deprimidos? Desejamos com urgência fechar os olhos e deixar que o prazer da primeira garfada oblitere a enormidade do peso que carregamos? Queremos uma mudança da paisagem que nos cerca, ser seduzidos pela diferença? Estamos fartos, cansados, desprovidos de ânimo e apenas esperamos que nos quebrem o apetite com a primeira coisa reconfortante que estiver à mão? Exigimos que o mundo não mude - ou apenas que o nosso conforto mude para melhor?

São tantas as variáveis que, houvera um génio que as soubesse concentrar todas numa única equação, estaria milionário pela consultoria prestada a todos os pretéritos, presentes e futuros candidatos a super-estrelas no mundo da restauração.

As nossas disponibilidades variam mas não as nossas pretensões - independentemente de modos e manias, queremos sempre o mesmo: um restaurante que seja de confiança. Onde espaço, serviço e comida estejam à altura do que nos levou à sua eleição.

Inaugurado em 1988 (oh tanto rio passou à sua vizinhança!), num local privilegiado (em Belém, junto à marina e no caminho para a manuelina torre que muitos insistir em ver como o ex-libris da cidade), desde sempre o Vela Latina se alcandorou ao estatuto de - à falta de melhor expressão em português - good value for money. Em visita da passada semana, pude comprovar que assim se mantém.


Numa envolvente de sonho - o rio, oh o rio!, a placidez da marina, os sinais da gesta lusa a garantirem a necessária auto-estima nacional -,


um interior em que o conforto é físico e visual, onde conservadoramente nos sentimos bem (sem surpresas; sem riscos; sem provocações). Largas janelas, decoração em consonância com a náutica envolvência.


No capítulo fundamental  - a certeza de que não se sai desiludido.

Como entrada, degustou-se um carpaccio de novilho com queijo da ilha de S. Jorge, casamento em versão nacional que não empalideceu perante a canónica opção pelo parmesão / Parmigiano-Reggiano.


Servido ligeiramente mais frio que o desejável, foi revelando as suas qualidades à medida que a temperatura subia, demonstrando a qualidade da carne e a harmonia com o S. Jorge pouco curado utilizados.

Com os filetes de pescada, alcandorou-se a satisfação a posição refastelada. Belos espécimes, belo tratamento! Respeito pelas necessidades da espécie, com tempo de fritura adequado a proporcionar um interior firme a deslindar-se à primeira dentada, em contraste com o crocante exterior. Belo exemplo do que deve ser um filete, a fazer escola e deixar memória.


Já o risotto de salsa e berbigão que os acompanhava, apareceu com os grãos mais desligados que o ortodoxamente estabelecido e - à maneira de um noivo bem apessoado que se retrai perante uma nubente radiosa e radiante - revelou-se tímido: bom sabor a mar, mas com um ligeiro défice de umami.


Com o segundo prato atingiu-se o ápice da refeição: um Bife do lombo Black Angus à moda do Chefe – Molho creme com boletos, mostarda absolutamente superlativo na origem, na preparação e no molho. Um céu, um nirvana, uma turvação de sentidos que termina num espreguiçar interior e um sorriso de apaziguamento a cada garfada, os olhos bem fechados e um suspiro que tenta ser discreto para não assustar os demais comensais.



Para onde ir depois deste êxtase degustativo? Para uma Tarte de maçã quente com gelado de baunilha


e um Pastel de nata da casa.


Sem surpresas nem desilusões, bons complementos à refeição, o recheio do pastel a provar bem, a massa ligeiramente diferente do farfalhudo folhado tradicional, sem comprometer.

E que melhor forma de terminar uma profícua, prazenteira, relaxada refeição que a acompanhar a bica e madalena amuse gueule, uma lágrima de Moscatel Private Collection de Domingos Soares Franco?


Recomendadíssimo!

Restaurante Vela Latina
Doca do Bom Sucesso, Belém
1400-038 Lisboa

Tels.: +351 213 017 118 ; +351 910 174 024
Fax: +351 213 019 311

GPS: N38º 41.6′ W9º 12.8

Encerra aos Domingos e Feriados.