No seu mais recente livro(*), escrito em parceria com o filósofo Daniel Innerarity, Andoni Aduriz postula que, mais além de sermos o que comemos, nós somos como comemos. "Na nossa comida quotidiana põe-se em jogo um interessantíssimo complexo de actividades culturais e sociais, um entrançado de rituais, convenções e funções biológicas, um espaço de tensão ética e política e mesmo uma concretização das realidades globais.", acrescenta por sua vez o filósofo.
Somos como comemos e no nosso acto de comer concentra-se todo o mundo. Inconscientemente, na nossa escolha, em paralelo e conjunto com milhões de outras, decide-se o destino de agricultores e produtores; de regiões e tradições; de ligações familiares, sociais, afectivas ou culturais. Num presente, em cada presente, mata-se ou reinventa-se o passado, cria-se ou ignora-se o futuro.
Todo o mundo se concentra no nosso acto de comer. Inversamente, esse acto permeia todos os aspectos da nossa vida. Prova dessa prevalência encontra-se na linguagem coloquial de qualquer cultura, impregnada de influências culinárias ou no uso, em muitas religiões, do simbolismo alimentar.
"Piece o' cake" dizem os americanos das coisas fáceis; "not my cup of tea", contrapõem ingleses acerca de algo que não agrada.
Em França, o que se vende bem, vende "comme des petits pains" (no Brasil é "como pãezinhos quentes"). E enquanto em Portugal é preciso arregaçar as mangas, na pátria da patisserie, é necessário "mettre les bouchées doubles".
Em português de Portugal, somos "cabeças de alho chocho" se não atingimos os patamares que de nós são esperados; quando deixamos o automóvel em casa ou a bicicleta na oficina viajamos "como sardinhas em lata"num obviamente "cheio como um ovo" veículo público.
(Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa) |
Metemos "a mão na massa" para fazer as coisas à nossa maneira e do nosso completo agrado mas comemos "o pão que o diabo amassou" se a vida nos foi madrasta.
Talvez a expressão que mais se adeqúe ao momento presente seja a das, outrora abundantes, "águas de bacalhau".
Sacrificamo-nos, sacrificam-nos - continua tudo em águas de bacalhau; o Governo anuncia medidas, há manifestações, recuam-se as medidas - continua tudo em águas de bacalhau; abraçam-se polícias, apupam-se polícias, cortejam-se polícias, agridem-se polícias - continua tudo em águas de bacalhau.
De onde virá esta imagem? Das águas salobrizadas pelo contacto com o salgado teleósteo, impróprias para o que quer que fosse? Ou, inversamente, da riqueza (o sal ou as expectativas) que se perde nas águas, não ficando aproveitável para nada?
É uma pena. Poderíamos encher a boca, os placards e os comunicados políticos com imagens fortes como paios, promissoras como as uvas moscatel, entusiasmantes como um cozido, galvanizantes como um vinhão. Mas não. Macambúzios como somos, encolhemos os ombros deprimidos, decidindo, como sempre, que tudo isto é para ficar, como sempre,
em águas de bacalhau.
(*) - Cocinar. Comer, Convivir - Andoni Luiz Anduriz e Daniel Innerarity, Ediciones Destino, Barcelona, 2012
Pedro, excelente post!
ResponderEliminarGostei tanto...
Quanto às "àguas de bacalhau", também não sabia. Fui procurar, não encontrei uma explicação consensual, mas aqui estão duas que têm alguma lógica:
http://aldacris.wordpress.com/2007/03/08/ficar-em-aguas-de-bacalhau/
Olá Paulina, fico contente por ter gostado :)
ResponderEliminarAs explicações linkadas também não me satisfizeram totalmente ainda que, por ter sempre usado a expressão no sentido de trabalho inacabado, que não deu em nada ou não chegou a bom porto, esteja mais próximo da primeira - a expressão seria, pois, uma evolução do "águas do bacalhau" inicial.
Preferia no entanto uma razão mais ligada à gastronomia do que às nobres artes do mar (ainda que, motivadas pela gula pelo bacalhau...)!