sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Porque é que o verde da revista é mais bonito do que o meu?

Vamos partir deste princípio: as gloriosas fotografias que revistas e livros de cozinha nos apresentam, nunca estiveram deitadas na marquesa de um operador de photoshop e o que reproduzem é o resultado exacto dos passos descritos na receita que ilustram.

Se assim é, porque é que aqueles verdes são gloriosos como uma Vénus de Boticelli e os que saem do nosso tacho são mais pálidos que as exibições de futebol do Sporting em versão Verkauteren?

(Fonte: http://www.bodybuilding.com/fun/ask-the-muscle-cook-adding-zest-to-broccoli.html)

(Nota para os distraídos e para os zelotas que se aprontavam para me chamar naif (1): as fotos são todas caracterizadas e só às vezes têm por figurantes elementos alimentares - aquilo do primeiro parágrafo era só for argument's sake)

De facto, em condições normais, os nossos vegetais verdes perdem, durante a cozedura, o tom brilhante que nos seduziu e levou a comprá-los. Mas há cozeduras e cozeduras. Vejamos o que acontece.

Utilizemos os brócolos como exemplo. A sua cor verde brilhante é dada pela clorofila, a qual contém um metal – o magnésio - que é facilmente deslocado por ácidos, convertendo-se em feofitina, esta possuidora uma cor verde acinzentada. No processo de cozedura dos brócolos, o aumento de temperatura irá provocar o rompimento das suas células e, nas mesmas, dos vacúolos, os quais contêm ácidos decorrentes do metabolismo da planta que irão passar para a água da cozedura. A sua reacção com o magnésio é inevitável e assim os nossos verdejantes vegetais começam o irreversível processo de mudança de tom.

Processos para, se não evitar, pelo menos atenuar o processo?
  • Fazer a cozedura sem tampa, de modo a permitir a eliminação daqueles ácidos que são voláteis.
  • Aumentar a quantidade de água da cozedura, diluindo assim os ácidos.
  • Aumentar o pH da solução, ou seja diminuir a acidez do "banho" da cozedura, através da adição de, por exemplo, bicarbonato de sódio.
Infelizmente, esta bela tem um senão: mantém-se o bonito verde da clorofila mas à custa da dureza do vegetal.

Vejamos. A textura das plantas é determinada pela estruturas das paredes celulares e pela pressão interna da água dos tecidos, o turgor.

(Fonte;http://sun.menloschool.org/~dspence/biology/chapter6/chapt6_10.html)

Numa cozedura, a aplicação de calor torna o alimento mais tenro actuando naqueles dois factores: ao desnaturar as proteínas das membranas das células enfraquece as paredes celulares, perdendo estas a capacidade reguladora da quantidade de água no seu interior; ocorrendo então a perca de água, o tecido perde o turgor e o vegetal fica mole e sem graça.

Relativamente aos componentes das paredes das células, a celulose não é afectada pelo calor, mas a hemicelulose e as pectinas são-no: algumas hemiceluloses dissolvem-se e a distribuição das substâncias pectídicas é alterada – dá-se o aumento da pectina solúvel à custa das insolúveis protopectinas e a parede celular perde ainda mais o seu “cimento”. Logo, paredes mais frágeis, tecido mais mole.

Ao acrescentarmos bicarbonato de sódio estamos, como foi dito, a aumentar o pH. Ora a perca de hemiceluloses e pectina é variável com este: as hemiceluloses são mais solúveis em água alcalina enquanto, inversamente, a pectina dissolve-se mais rapidamente a valores de pH inferiores a 4 - 4,5. Cozer vegetais em meio alcalino rapidamente os converte em desagradáveis pedaços de consistência duvidosa ao palato, enquanto um meio neutro ou ácido manterá a firmeza dos mesmos por um período de tempo maior.


Dilema doloroso este – mantemos o verde dos campos nos nossos brócolos, candidatando-nos a sentir um arrepio de desgosto à primeira garfada (e, se nos distrairmos e formos demasiado liberais com o bicarbonato, passarmos o resto do serão a achar que o interior da nossa boca foi sanitarizado com sabão algures durante a refeição) ou mantemos a textura firme (se estivermos atentos aos tempos de cozedura) à custa de uma desanimadora cor, imprópria de um cozinheiro que se preze?

A reportagem possível:
brócolos cozidos em água com teor ácido (adicionado vinagre), neutro (adicionada EPAL)
e básico (adicionado bicarbonato de sódio).
Verdete e duro ou verdão e mole?
Existe sempre a possibilidade de, reproduzindo as experiências neurogastronómicas que a Susana Novais Santos com tanta proficiência investiga, refeicionarmos de olhos fechados com os ouvidos imersos em sons crocantes...

Ou, menos radicalmente, optar pela cozedura em vapor e reduzir o tempo de cozedura. Mantém-se a cor, preservam-se muito mais vitaminas e sais minerais e fica-se com um toque crocante que, bem conjugado com os restantes componentes do prato, fica muito bem no resultado final.

(Fonte: http://wellfitlife.me/2012/07/25/6-steps-to-steamed-broccoli-without-a-steamer/)
Afinal, o nosso verde consegue brilhar tão alto quanto o das revistas... E sem photoshop!

(1) - Ia a escrever banif mas alguém podia achar que eu estava a fazer publicidade encapotada (olha, fiz publicidade encapotada!...)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Crítica gastronómica na revolução





Grassava a "revolução" neste Portugal de brandos costumes abananados por quase um ano de manifestações, contra-manifestações, ocupações, saneamentos, nacionalizações, comunicados do MFA, intentonas, inventonas, maiorias silenciosas e minorias ruidosas, governos provisórios, provisórios generais, soldadosunidosvencerão, alianças com o povo, alianças sem o povo, fora com as alianças, discursos, propaganda, discursos, comunicados, contra-comunicados, palavras de ordem pichadas a vermelho, palavras de ordem gritadas a vermelho

(lembro-me de um momento igual e igualmente contemporâneo numa aula de música que foi descambando da desafinação para a polifonia de melodias diferentes, do bater sincopado de palmas para marcar o ritmo até à desenfreada pateada e ao bater dos tampos das carteiras, a professora a perder a tramontana porque já tinha perdido o controle de uma cambada de miúdos de 12 anos, e por uma fracção de tempo senti-me fora do meu corpo, fora daquela acção, como um espectador a pairar sobre a turba imberbe, sobre a professora já para lá de Marraquexe, sobre aquele comboio à desfilada sem hipótese de parar, e a desapegadamente pensar isto vai dar merda. E deu.)

ódios gritados a vermelho e a preto e branco, intolerâncias várias, múltiplas, profundas, diálogos de surdos e muitas vezes de cegos, cumplicidades, conspirações, delegações, prisões, libertações, o país parado a andar, a falar, a sonhar, a utopisar - quando nasceu, como contraponto da esquerda socialista ao dominador Expresso (que ainda não era espesso) no combate à esquerda extrema e arredores, um jornal da ala PS para evitar aos seus simpatizantes o incómodo das graçolas dos comunistas vizinhos por levarem para o café de sábado um jornal reaccionário. E assim apareceu O Jornal.

(declaração de interesses: bebedor confesso de toda a tinta publicada pelo jornal da duque de palmela durante a década de 80 até ao aparecimento dessa lufada de loucura séria que foi o Independente - confesso - que sempre achei O jornal de um cinzentismo atroz, chaaaaaaato como a potassa, sempre muito politicamente correcto, uma espécie de desencarnação do actual sec-geral)

Recentemente, em demanda da pré-história da crítica gastronómica lisboeta, redescobri os primeiros anos do jornal - que foi publicado entre 1975 e 1992 - e não pude deixar de admirar a coragem do director que, em tempos de tanta seriedade de ideais, permitiu uma coluna de um tema que poderia rapidamente ser objecto de protestos vários, pelo seu carácter frívolo, burguês mesmo, quase a tocar o contra-revolucionário: a gastronomia.



É certo que o seu autor - que assinava Manuel Pedroso mas que tinha por nome próprio Luís de Sttau Monteiro - tinha um pedigree à prova de protestos revolucionários: autor proibido pela censura e celebrado pela ácida Guidinha que, no Diário de Lisboa primeiro, escaqueirara sem vírgulas muita da pasmaceira marcelista dos últimos anos do regime anterior.

"(...) cá na Graça há uma que arma a dizer que tem todo o bacalhau que quer porque conhece um senhor que conhece um outro que é primo dum outro enfim uma bicha de conhecimentos que nunca mais acaba para comprar um rabito de bacalhau! cá na Graça as pessoas armam a dizer que têm o que falta às outras é uma maneira bestialmente estúpida de armar mas as pessoas são assim mesmo e não há nada a fazer senão aguentar adeus vou para a bicha do sabão que anda para aí gente a dizer que vai subir." (tirado daqui)


Ler as crónicas gastronómicas de Manuel Pedroso é descer a um Portugal gastronómico que foi só há bocadinho mas que nos parece tão longe. Das faltas de alguns géneros alimentares, à menoridade da maioria dos restaurantes. Da rarefacção dos restaurantes de referência, das referências a cozinheiros.



Sobre o bife, escreveu, " Quem estiver num restaurante não pode deixar de reparar que mais de metade dos presentes está de faca na mão a batalhar com esse pedaço de carne dura e sensaborona a que se dá o nome de "bife". O facto é tanto mais de estranhar quanto é certo que o "bife" que se come entre nós é francamente mau. Não temos pastos e não apurámos raças, de forma que a nossa carne é de péssima qualidade. (...) Em casa o cidadão médio raras vezes come um pedaço de carne porque o seu preço o torna praticamente inacessível.  Quantas vezes e que a família pode comer bifes? Quem tem dinheiro para encher a barriga dos meninos de carne assada? (...) Encantado da vida, o cliente encomenda o "bife da casa e, passada a meia da praxe, é-lhe servido um pedaço de carne dura como granito acompanhada de batatas fritas e - para justificar o facto de ser "da casa" - de um ovo estrelado e de pedaços de uns legumes ácidos e avinagrados que, entre nós, passam por "pickles". No fundo, o "bife da casa" é isto e mais nada, excepto em alguns restaurantes mais caros cujos proprietários juntam à mistura descrita uma fatia de mau presunto."

O glorioso Tavares, numa Lisboa em polvorosa despe os galões e serve comida económica: "Sabendo que o Tavares, até pela sua reputação, tinha fama de caro e que essa fama o iria prejudicar, o Fernando resolveu enfrentar o problema e criar à sua casa novas condições de vida. Sabendo que o Tavares era tido por bastião do snobismo português e frequentado por VIPS da vida política e económica portuguesa, o Fernando resolveu "inventar" um Tavares novo ou, melhor, reinventar a imagem da sua casa centenária adaptando-a aos novos tempos. (...) Um almoço ou um jantar completo neste restaurante em que o serviço continua impecável, custa entre 70 e 100$00, o que julgamos verdadeiramente notável numa época em que qualquer restaurante médio pede mais do que isso e não chega aos calcanhares do Tavares."

Para terminar, que o texto vai longo e a paciência para o ler curta, fica a ironia feroz da crónica sobre a primeira hamburguer house da cidade, em versão completa (clicar na imagem).

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Da vista como justificação

Há mais anos do que quero contabilizar, na companhia de quem já há muito não atura as pepineiras deste país, patrocinado por um Centro Nacional de Cultura que ainda era muito mais do que um clube para reformados pré-gasparinos, percorri em forma de passeio os cais que, partindo de Cacilhas vão quase (iam quase) até à projecção da ponte 25 de Abril.




Era Junho e o final do dia. Nunca tinha visto Lisboa com aquela específica luz, aquela intensidade de rosas e dourados, nunca a tinha sentido tão próxima e simultaneamente tão afastadamente exposta, cidade branca tão ausente de branco.

Foi paixão. Daquelas que só a adolescência de espírito permite, assolapada, indelével, tão forte que ainda dói.

Há pelo menos vinte anos que, nesse cais que do Ginjal se chama, é possível procurar esse momento mágico de fim de tarde sentado a uma mesa e conjugá-lo com algumas portuguesas (ou brasileiras) iguarias no Ponto Final ou no Atira-te ao Rio, restaurantes vizinhos, de propostas diferentes, mas que fazem da vista e do espaço circundante a maior mais-valia do que têm para oferecer.

Perante o espectáculo disponível para quem os demanda, não sei se a maioria dos comensais se importa - ou sequer repara, ou sequer acha isso importante - com a qualidade da comida.

Confesso que também eu concedo alguma latitude nos pratos apresentados - afinal, uma paixão é uma paixão e a sua fruição permite uma certa indulgência no julgamento.



E, apesar do queijo apresentado de entrada não ter a pretensão de ser candidato a primeiros prémios em concursos internacionais, é suficiente companhia para acompanhar o cair do dia, com, por exemplo, um vinhão que vem de longe e faz esquecer o uso intensivo de castas francesas nos vinhos da região de Lisboa.



E há as pataniscas e o arroz de feijão.



E os jaquinzinhos (chiuuuuu!) que se perdoam pelo bem que sabem (e pela fritura próxima do exemplar).



Mas há limites. Quando os preços começam a ser mais baseados na vista do que na preparação culinária e esta começa a avisar que não se aguenta na experiência - como o arroz de tomate provado a semana passada que mais parecia saída da primeira tentativa de uso de fundos knorr de uma infantil mestre-cuca - pergunto-me se não será melhor começar a pensar em trazer cesta de piquenique e acampar no relvado adjacente, deixando aos turistas o incómodo da experimentação.



terça-feira, 13 de agosto de 2013

Whatever happened to Alexandre Silva?

Prosseguindo, neste Agosto de gelatina, com a publicação de algo há muito semi-pronto para tal: as apresentações dos chefs no Peixe em Lisboa, idas há quatro meses para o quartel das memórias gastronómicas de quem a elas assistiu e para a casa do esquecimento de todos os outros.

Houve cozinheiros que me deixaram a lembrança apalatada, uma apreciada e grata recordação, uma certa felicidade pela oportunidade de os conhecer - ou re-conhecer - de contactar com a sua arte, as suas propostas. De sentir as suas criações, em coerência com as suas ideias, consistentes, saborosas, apetecíveis de experimentar e de partilhar. Cozinheiros que justificaram cada minuto empregue em ouvi-los, cozinheiros convidativos que fazem pensar, que são um convite a uma nova visita, um novo encontro, um novo prazer.


O Alexandre Silva não foi nada disto.

Perdido entre uma declarada devoção pelos (agora descobertos?) sabores e saberes do Alentejo e o passado recente que lhe fez o nome e a notoriedade, auto-deslumbrado com a neófita vocação de autor cinematográfico, apresentou pratos que foram... nada. Nem respeitosos com a tradição que afirmou perseguir, nem criações dignas - apenas desinspirados arranjos culinários de produtos locais, atabalhoados, displicentes.





Não sei se o chef aspira mudar de profissão, se entende a estadia no Alentejo profundo como um exílio castigador ou se, como os jogadores do Sporting da época passada, se "esqueceu" de como se faz bem aquilo que já tão bem fez.



Para esta cozinha, para estas propostas, para este quase desprezo, não há mesmo vontade de rumar a Vila Viçosa.