quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O mercado do Fialho

(Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal)
 "Os gongs da Sé dão de repente quatro e meia—a hora das carroças que vão para o mercado. Eil-as que vem pelas quarenta portas da cidade, aos solavancos dos bois e das muares, com seus rodados biblicos e antigos. Algumas enormes, com os taipais em corbeille, lúgubres como sarcófagos, vem acoaguladas de ramas e canastras. Hortaliceiros guiam-n'as com gestos d'automatos, as grandes botas cruas, té á rotula, o varino no tronco em grandes pregas, e de barretes, aproados como mitras, a aguilhada ao hombro, dil-os-hieis colossaes evocações do mundo heróico, restauradas sobre uma entrada dos exércitos de Xerxes, em plena Grécia ...

(Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal)
Outras, mais curtas, fueiros hirtos no ar. espendurando carne de boi, sangrenta, em nacos musculosos, parecem evocar, n'aquella nocturna sombra, lendas de patibulo, e na dianteira, em pé, uma espécie de gnomo barbaceno, arregaçado, d"azorrague na mâo, gorro de pelles, agita os braços, cinge de golpes a mula, entre jactos de pragas e expectorações de raiva biliosa. E approximando-se do mercado, o cortejo engrossa, carroças ás dezenas, jumentos com ceirões, grandes cavailos pernaltas, com pyramides de bilhas e de fructas.

(Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal)
Aquillo formiga, confunde-se, agglomera-se; depressa o vozear toma phrenesis de lufa-lufa. no momento em que, vibrada a sineta do mercado as portas se abrem, e no vasto âmbito da praça as primeiras golfadas de provisões estatelam a sua turgencia horticula e a sua pantagruelica confusão. Desde essa hora, a agua-forte que primeiro esboçara na meia sombra, episódios desconnexos, toma de chofre linhas de quadro formidável. O mercado é sinistro, todo de ferro, acachapado e com torrellas nos ângulos, zimboriadas de negro, onde um ou outro laivo de metal chammeja cruamente.

Por cima o céu fúnebre, com aguaceiros pingando de bojo das nuvens muito baixas, restringe a elevação do olhar para as alturas, abafa os prédios sob fuligens trágicas, coladas, que o vento remeche sem conseguir mostrar pelos farpões, os azues d'alva. E os gallos cantam, vão-se abrindo um a um os cafés d'entomo á praça: é o Despique, o Valenciano, o Diogo, as tabernas de ginja, as baiucas de vinho e d'aguardente — Meio curto! —Duas bebidas brancas!—Cabaz!— Café e pão!

Enquanto as carroças aguardam lhes chegue a vez do descarrego, pares de gallegos trazem e levam dos depósitos perto, a pau e corda, montes de hortaliças: fios de gaz bruxuleam entro as naves da praça, como cirios accesos ante o altar do deus estomago, e os asphaltos abarrotam cada vez mais do provisões, um cheiro de hortaliça esmagada esthesia a narina; cinco horas! seis horas!. —e é quando entra do prostíbulo e da batota a gente que apodrece, e quando sae para a labuta a gente que trabalha."

(Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal)



FIALHO D'ALMEIDA
Vida Irónica
(JORNAL D'UM VAGABUNDO)
2.a EDIÇÃO
LISBOA
LIVRARIA CLÁSSICA EDITORA DE A. M. TEIXEIRA
1914


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