segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Saudades

Quem morre fica pleno de qualidades porque o sentimento de perda que nos atinge faz por realçar as memórias reconfortantes, enviando para o esquecimento tudo o que de menos positivo aconteceu. É por isso que não gosto muito de elogios a posteriori: porque (quando são sentidos e não convenientes) sãp mais o nosso sentimento de culpa a desculpar-se pelas palavras não ditas a tempo do que um retrato equilibrado de quem partiu. Exagero e desmesura que desfocam a figura e fazem soar tudo um bocadinho a falso.

Prefiro assim falar da influência que me causou quem partiu. Os valores e os gestos, as palavras ou o canto. A presença.



Cesária Évora foi essa presença em muitos momentos, a consubstanciação de uma saudade que não era fado mas também continha o fado, uma dolência que também nos corre na alma.

E foi-me também um exemplo de vida, ao ter a resiliência necessária para resistir à adversidade e a sabedoria imprescindível para resistir às tentações do sucesso.

Dizer que Cesária é Cabo Verde, será, mais do que um lugar comum, uma redundância.

Para a minha memória e vivência, ainda mais Cabo Verde é a cachupa, prato das longas tardes, regadas a amigos e muito, muito boas ondas. Boa onda.

Ligo aqui as duas numa ponte que já é de saudade, de coisas que não retornam, ficando vivas apenas na nossa memória.

Não sei se esta é a mais correcta versão, mas é a de um homem muito correcto a quem a culinária portuguesa deve um dos seus grandes registos - Olleboma, António M. de Oliveira Bello.

"Para se fazer a cachupa começa-se por se preparar milho pilado. Deita-se o milho seco num pilão de madeira (espécie de almofariz grande) batendo-se ledvemente com o pilão do mesmo dando movimento de rotação para não quebrar os grão mas separar a pele e o gérmen ou coração. Depois de pilado deita-se o milho em água simples para lhes separar a pele e os gérmens. A seguir coze-se o milho em água com um pouco de sal juntamente com algum feijão branco grande produzido naquele arquipélago, que se chama fava, bonjona ou favona.

Quando o milho e o feijão estiverem quase cozidos, deita-se para cozer juntamente carne de porco salgada que se pôs de molho por 10 a 12 horas. Estando tudo cozido, faz-se um refogado com cebola, manteiga de vaca ou banha de porco e começando a cebola a alourar deita-se dentro a carne de porco já cozida, toucinho (um bom bocado), chouriço e às vezes galinha assada ou cozida. Estando bem refogado acrescenta-se o milho e o feijão cozidos, mistura-se tudo ao lume, rectificam-se os temperos de sal e pimenta e serve-se bem quente.
"

Culinária Portuguesa, Ed. Autor, Lisboa, s/data (1935?)

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