Querida Mô,
Se existe um peixe com quem muitos seres humanos se parecem é o linguado. Todos nós nascemos iguais, crianças temos toda a esperança do mundo dentro de nós, somos um livro aberto de oportunidade. Depois, a vida vai pisando, a uns mais do que a outros, à maioria certamente que, para haver senhores, muitos mais servos terão de existir. Para se adaptar às condições do meio e assim poder sobreviver, o linguado começa a mutar-se desde larva: migra um dos olhos e achata-se, colando-se ao fundo. A muitos também a vida achata ou se achatam eles próprios em auto-adaptação - a nossa mente é resiliente e transmuta-se sempre que necessário.
Também Lisboa cresceu das suas vicissitudes, muito mais pelo acaso - essa equação de que só os deuses conhecem todos os factores - do que pelas importantes e celebradas acções da trilogia Carvalho e Melo-Araújo-Pacheco. (Um parêntese para corrigir - a reconstrução dita pombalina a seus donos, Manuel da Maia e Eugénio dos Santos mas, enfim, Pombal foi a mão de ferro que a tornou possível). Foi-se adaptando, mudando o olho de sítio (os habitantes que foram desaparecendo para a periferia), achatando o corpo para o interior em fuga do rio. Mais do que do traço de eruditos, as ruas e urbanizações surgiram da oportunidade de negócio ou da irregularidade das quintas. E a mão férrea que Duarte Pacheco soube impôr e deixou em legado ao Município foi perdida algures entre a Revolução e os ventos neo-liberais.
Plano Director de Urbanização de Lisboa, 1948 (autor: Horácio Novais ; fonte: Arquivo Fotográfico de Lisboa) |
Curiosamente, a pouca monumentalidade que sempre a caracterizou a cidade - monumentalidade nos volumes, na altura média dos edifícios -, parece estar a mudar com a quase liberalização das cérceas, essa palavra ciciante que traduz os metros a que um pato-bravo pode ambicionar subir com o seu investimento imobiliário. Lentamente, a cidade emagrecida espiga e começa a parecer-se com aqueles adolescentes desengraçados que não sabem o que fazer com o corpo que lhes calhou em sorte. Nascem-lhe borbulhas pulvurentas, a voz muda e esganiça, gostava de ser levada a sério no mundo dos adultos mas continuam a só lhe achar graça aos defeitos de crescimento.
Já não é o linguado que se adaptou e muito menos dela se retira a bela carne que faz a delícias de qualquer um. É antes um cachucho cheio de espinhas que a todos incomoda.
LINGUADOS COM RECHEIO DE CAMARÃO
1 linguado (600 gr a 1 kg) ; 3 batatas grandes; 60 gr manteiga; 2 colheres sopa pão ralado; 2 colheres sopa queijo ralado;
para o creme de camarão: 500 gr camarão; 1 copo de farinha; 1 copo menos 1 dedo (!!!) da água da cozedura; sal, pimenta, noz-moscada; sumo de limão.
1. Preparação do linguado.
Tira-se a pele escura, dá-se um golpe da cabeça ao rabo, levantam-se os filetes e retira-se a espinha dorsal, as ramificações e as espinhas pequenas dos lados.
2. O creme.
Cozem-se os camarões. Faz-se um molho "roux", acrescentam-se os camarões e tempera-se com os condimentos e o sumo de limão.
3. Finalização.
Recheia-se o linguado com o creme. Coloca-se o peixe com a pele branca para baixo no pirex previamente untado, deita-se por cima o sal e duas colheres de sopa de manteiga e vai ao forno 8/10 minutos. Faz-se um puré de batata que se dispõe à volta do peixe. Polvilha-se este com o pão ralado e o queijo e volta ao forno para alourar.
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