quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Duas Receitas de Sardinhas


Conta-se que um dos nossos reis, tendo uma vez provado sardinhas, prohibira, com grandes penas, que tornassem a entrar nas suas cozinhas. Achou-as tão saborosas, que temeu, se se afreguezasse, fazel-as encarecer, e privar o povo de poder continuar a compral-as.

Ora, que faria se Sua Magestade me tivesse tomado por cozinheiro, e eu lhe preparasse os dois pratos, de que vou dar receita ao meu querido amigo Plantier? Mandava-me cortar a cabeça . . se eu as fizesse para mais alguém.

Sardinhas Maria Luiza — Escamam-se, estripam-se e descabeçam-se vinte e quatro sardinhas bem frescas; tirase-lhes a espinha dorsal e arranjam-se com sal, n'um taboleiro de fogão, mettendo1o no forno bem quente. Emquanto as sardinhas se passam, batem-se três ovos, com sufficiente queijo de cabra ralado, uma pitada de pimenta moida, e uma colherinha,de vinagre. Voltam-se as sardinhas, e tornam a bater-se os ovos. Logo que aquellas estejam um pouco assadas, toma-se uma frigideira de folha, esfrega-selhe o fundo com um dente de alho, põe-se boa manteiga de vacca, em pequenas porções, por todo o fundo da frigideira. Batem-se novamente os ovos, juntando-se-lhes pão duro, ralado, em porção sufficiente para tornar o liquido espesso ; e, acto continuo, passam-se as sardinhas n'esse molho, de modo que fiquem bem ensopadas, e põem-se na frigideira, em posição graciosa e artistica; deita-se-lhes por cima pão duro, ralado bem fino, e mettem-se no forno até ficarem bem alouradas, mas não muito secca.Servem-se em seguida.

Este prato não é indigno de ser acompanhado com vinho do Rheno; mas não o havendo, pede Bucellas, que não é peior.

Sardinhas recheiadas á Gomes de Amorim — Preparam-se. vinte e quatro sardinhas como as antecedentes, e recheiam-se com picado de ostras, ou de qualquer outro marisco, salsa e cebola, tendo sido o picado previamente cozido quanto baste. Vão as sardinhas ao forno, como na primeira receita, fazendo-se uso de sal refinado. Passam-se por sua vez pelo mesmo molho, alouram-se, como as primeiras, como pão torrado, e servem-se. Advirto que o recheio é mettído logo que ellas vão a primeira vez ao lume.
Servem-se com os mesmos vinhos.

F. Gomes de Amorim.




F. Gomes de Amorim
(Fonte: blioteca Nacional)
"O Cozinheiro dos Cozinheiros" é uma colectânea de receitas coligidas e publicadas  pelo editor Paulo Plantier, tendo atingido notável sucesso tanto em Portugal quanto no Brasil, onde foi objecto de edição local. Tem a curiosidade de conter contribuições de alguns dos mais ilustres homens de letras da altura (foi lá que Ramalo Ortigão obteve a sua fama de gastrónomo com as "suas" batatas insufladas). Bulhão Pato também contribuiu, ainda que nela não figurem as bigger-than-man amêijoas homónimas.

F. Gomes de Amorim foi, como Almada poria, décadas mais tarde, poeta, escritor "e tudo", não tendo passado ao futuro em mais do que rodapés de bibliófilos e académicos (o que não quer dizer que a sua influência tenha de todo desaparecido). As receitas, não sendo totalmente novidade, merecem, no entanto, experimentação, valendo isso sim, pela escrita deliciosa, a pedir seguidores nos dias presentes.

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