sexta-feira, 30 de setembro de 2011

DOC: Ficar, repetir, levemente questionar


Depois de tudo o que li, das críticas, referências, escritos do Chef e pratos divulgados, pecado seria estar perto e não o comprovar in loco.

O DOC está num sítio lindíssimo,


chega-se lá com os olhos saturados de um continuum de uma paisagem que não sabemos se admirar se respeitar,  



(que super-homens terão plantado e ainda hoje vindimarão estes renques colocados quase a pique?)


tem uma arquitectura que desde logo anuncia o que poderemos esperar: uma abordagem contemporânea ancorada no local.





Combinando a languidez do espaço exterior (um deck que convida à abstracção, em sintonia com o espelho de água que é o Douro estival) com uma razoável solenidade dada pela utilização de materiais naturais despojados de excessos decorativos e pela concentração das cores em tonalidades que são variações do castanho (ascetismo acentuado pela excepção que são os candeeiros), o DOC erige-se como um templo, subconscientemente anunciando aos entrantes a condição mística da experiência prestes a acontecer.




Convenhamos que, como estratégia está bem pensada. Venha a experiência então.

Duas "cortesias do chef" para começo.

Uma muito boa "Sopa fria de melão com colher de presunto e requeijão e nozes caramelizadas"


e uma superlativa "A batata, o salmão e o limão" que me esqueci de fotografar de entusiasmado que já estava, discos de batata frita com recheio de pasta de salmão e raspa de limão, servidos em pedra de xisto (mantém-se a moda, ainda que, resultando visualmente tão bem, o pecado seja por uma vez perdoado).

Como entrada escolhera-se "Foie gras com brioche, maçã salteada em azeite e mel, compota de maracujá, baunilha, papaia e fatia de manga caramelizada" o qual mereceu igualmente nota máxima. O doce da maçã a cortar a enormidade de gordura (mas que bem sabe!) como seria expectável, a novidade das notas tropicais e a graça da fina fatia de manga, a surpreender a função de "tosta" pelo seu carácter doce. Visualmente, um sucesso.


E aqui fiz uma pausa. Deixei todos aqueles casamentos felizes, feitos de complementos e contrastes, passarem da memória do palato para a associação a memórias - é assim que construímos pontes na nossa inconsciente arrumação mental, não é? O sabor da manga com o cheiro inconfundível do litoral tropical onde a provámos, acabada de ser colhida, pela primeira vez. Ou a macieza do paté e o gosto inconfundível que deixa, com a surpresa do aroma que o forno exalou no primeiro dia em que o experimentei fazer em casa e em conjunto com um amigo do peito.

Do outro lado do vidro, uma paisagem que aqui já estava, assim, nos tempos da D. Antónia ou do senhor Marquês. Imutável e constantemente trabalhada. O mesmo rio e, no entanto, nunca as mesmas águas.

Beatitude.


Vieram os pratos substanciais. (Não sei porquê, puxou-nos a escolha para pratos muito pouco ligados à zona - falta de propostas mais apelativas do lado da tradição? Ausência de propostas consistentes do lado da tradição?) Não nos desiludiram.

Um "Caril de Gambas com Vieira, Arroz aromatizado com coco, chutney de tomate, uvas e maçãs" correctíssimo, delicios, ainda que ortodoxo na composição e pouco imaginativo na apresentação,


e "Tamboril e Vieira com Risotto de Lima e ervas (rebentos de sakura) sobre cama de Pakchoi e Chouriço". Continuo a preferir risottos menos al dente, ainda que entenda a adopção da ortodoxia. O aroma da lima resulta muitíssimo bem adicionando leveza ao peso pesado que é o risotto. Peixe e  bivalve cozinhados no ponto certo, com a "cama" a complementar acertadamente.


Finalmente as sobremesas. "Trilogia - Soufflé de limão, zabaglione de vinho do porto com uvas brancas, nozes e frutos secos e gelado de amêndoa", uma santíssima trindade!


E "Queijo da serra com compota de tinta roriz", mais uma associação bem concertada.


A terminar, como cortesia final, estes miminhos (que a minha médica, via sms - como são big sisters, os médicos de hoje! - me proibiu de experimentar sob pena de agravamento da dieta). Diz quem provou que estavam de comover e pedir por mais.


Que impressão nos fica deste DOC? Sem dúvida, um lugar de (muito) bem comer.

Algumas ligeiras perplexidades, a mais significativa das quais a contradição entre a publicitada (no local, em panfletos à disposição) filosofia culinária do Chef Rui Paula ("A gastronomia deve ter uma raiz emocional, uma ligação ao contexto cultural. O nosso tem o universo de Trás-os-Montes, do Alto Douro e do Douro Litoral") e alguns dos pratos à disposição (caril de gambas? risotto?). Outro, a insistência nas placas de xisto - generalizada que cada vez mais está a sua utilização, perdida a graça da surpresa, sabem a dejá vu, desvalorizando o impacto do prato. Pequenos reparos mesmo, a não empalidecer a boa estrela do local.

(A posteriori, depois de uma experiência sublime noutra casa, descobri-me com uma areia no sapato em relação a esta refeição - o que seria? Excelente comida, bom serviço, óptima implantação e correspondente vista... Muito introspectei para chegar a uma única hipótese - secura. Não consigo explicar melhor - falta de um pouco de descontracção, empatia por cima da simpatia, ligação com o cliente. É só mesmo uma ligeiríssima impressão, mas ficou por cá a incomodar o subconsciente. À espera da próxima visita.)

 Clasificação: Cozinha - 4,4/5 ; Global: 17,4/20)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Restaurante O Cortiço: um bom exemplo

Das andanças estivais pela Beira, ficou por relatar a visita a esta instituição.


O Cortiço é obra de um iluminado que percebeu a tempo (antes do tempo?) a importância da tradição gastronómica na matriz cultural dos povos e a absoluta necessidade da sua preservação num tempo de homogeneização e rápida adulteração dos hábitos.

Dom Zeferino, percorreu (nos anos 70 e 80) aldeias e vilas da região em colecta apaixonada e o resultado está espelhado em muitos dos pratos da ementa.

Bacalhau podre apodrecido na Adega, Bacalhau à lagareiro, Polvo frito tenrinho como manteiga, Polvo à lagareiro Feijocas com todos à maneira da criada do Sr. Abade, Rojões com morcela como fazem nas aldeias, Secretos com arroz de feijão, Cabrito assado no forno à Pastor da Serra, Coelho bêbado três dias em vida, Arroz de pato à maneira antiga, Vitelinha na púcara à lavrador de Cavernães, Aba de vitela à Lafões, Arroz de carqueija,

são nomes que nos impelem a uma estadia prolongada, num desejo de sessões contínuas só desaconselhado pelo perímetro ventral a duras penas mantido...

Pão rústico saboroso, uma rija jarra de madeira plena de um redondo vinho do Dão, 



prepararam o caminho para o triunfo de um oloroso, macio, encandeador arroz de carqueija,



muito bem acompanhado pelo coelho bêbado,


e adoçado por umas farófias correctas.


Espaço acolhedor, "típico" com tectos de madeira e a alvenaria de pedra das paredes deixada à vista, serviço normal, toalha e guardanapos de pano, talheres e copos vulgares.

Nada destacaria este restaurante não fora a excelência da cozinha e a especificidade regional da maioria dos pratos o que torna este cortiço um local de paragem obrigatória na passagem pela cidade.

Classificação: Cozinha: 3,8/5 ; Global: 14,7/20

sábado, 24 de setembro de 2011

Umai

É um prazer.

Sai-se de sorriso nos olhos, com a certeza de um tempo bem empregue, um encontro bem vivido.

À noite, há o prémio extra da bipolaridade do espaço interior de evocação zen e o exterior de fachadas intensamente lisboetas - comer delícias orientais sob o olhar maternal da sardinha assada. Sentir-se-iam assim os nossos percursores na Lisboa das Descobertas?

Continua muito bom, este canto do Paulo Morais e da Anna Lins. 


Espinafre com molho de sésamo 

Cestinhos wonton com salada de manga

Cogumelo Seta de Cardo grelhado

Gyoza

Sushi to Sashimi

Cornucópia de sésamo

Vieiras com espuma de caril indiano

Tempura de camarão e legumes

Atum com crosta de tomilho

Yakitori (espetada de frango)

Bolgoki (espetada de novilho coreana)

Sopa ácido-picante

Misoshiru

Sobremesa

sábado, 17 de setembro de 2011

Lisboa, Ribeira e Peixe

Grandes, enormes fotografias de Amadeu Ferrari, descobertas nessa arca de tesouros sem fim que é o Arquivo Municipal de Lisboa. Encontrei-as quando procurava ilustrações para o texto de Maria Archer sobre as peixeiras lisboetas. Merecem um post só para si, estes instantâneos espantosos de um tempo que já não é, num assombroso e inesperado colorido para a época em que foram tiradas - o Arquivo indica o intervalo 1950-1970, eu inclino-me, pelas roupas e pelos veículos, para princípios dos anos 60.

Veja-se o peixe à venda nas ruas de Lisboa dessa época. Os rostos, o vestuário, os gestos. Eu acho tudo tão, tão português arquétipo que até parece encenado nos estúdios da Tóbis.

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

As Peixeiras de Lisboa, 1940

Curioso texto, publicado numa Revista Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, em 1940. Outros tempos - havia "fregueses", havia mercados a ser protegidos da venda ambulante, havia pescadas e pargos em profusão e ao alcance de parte significativa da população lisboeta, havia polícias "bons e maus", posturas que impediam as pessoas de andar descalças. Falar de sindicatos e "política" num boletim municipal na vigência da Ditadura afigura-se estranho e... no entanto, assim foi, preto no branco.

Do texto, fica a ideia de uma Lisboa - se bem que mais estratificada - mais humana, mais pausada. E aquelas pescadas deviam saber bem melhor.

"Houve um tempo em que Lisboa dispunha dum friso de peixeiras decorativas e trajadas ao uso de Ovar, esbeltas como bailarinas, garridas como figurantes folclóricos. Vinte anos passaram e a peixeira perdeu o seu pitoresco, enquadrou-se no ambiente citadino, vestiu-se dos tons neutros, acinzentados, em voga nas civilizações feitas por maquinaria e carvão. As "ovarinas", as "varinas", são agora, simplesmente, as "peixeiras".

Varina
(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)
Mas o que é, como vive, o que pensa, o que quere, a peixeira dos nossos dias?

A senhora Rosa Pereira, de 33 anos, casada, com 5 filhos, natural do Lugar do Cimo da Vila, concelho de Baião, distrito do Porto, senta-se em frente de mim, depois de ter feito a sua vénia de cortesia ... A canastra do peixe ficou lá fora à porta, mas mesmo assim um violento cheiro a pescado invade o aposento, como se uma onda do largo entrasse com ela. Veste de chita clara, com saia travadinha, curta, a blusa de mangas arregaçadas, o avental orlado de renda. Traz um lenço garrido a pender do cabelo, oiros modestos nas orelhas e no pescoço. Os pés, sem meias, escapam-se das chinelas.

Diz-me que mora na Azinhaga de Santa Luzia, para os lados do Areeiro como muitas outras peixeiras de Lisboa. Eu estranho a informação. Lembro-me que a tradição lisboeta se prende à vistosa varina da Madragoa e da Alfama, a varina da saia rodada, a varina do "Tom". Ela insiste, porem em dizer-me que as peixeiras preferem, agora, para morar, os subúrbios da cidade e a sua periferia. No Alto do Pina, na Charneca, (ali ao Lumiar), em Sacavém, nos Olivais, no Casal dos Mochos (que vizinha com o Campo Pequeno), e outros arruamentos pobres e distantes, abundam as peixeiras. Tôdas as manhãs, engulido à pressa o café, ei-las que vão chinelando pelas ruas ainda desertas a caminho da Ribeira Nova. A lonjura é grande, mas a varina é forte.

- Varinas, é um modo de dizer ... Interrompe ela, como quem põe os pontos nos i i. Essas que vinham de Ovar, com a saia de barra. a cinta, o chapéu redondo, hoje em dia são poucas. Essas é que são mesmo varinas. Cá nós somos peixeiras, e viemos donde calha. do Algarve, do Douro, da Beira ...

Contou-me então como saiu do doce cantinho provinciano para vir cumprir o seu destino no grande torvelinho de Lisboa.

Tinha 13 anos. O pai trabalhava numa fábrica de tejolos, lá na terrinha. Contratado em melhores condições, aceitou um lugar na cidade. Ela, mal aqui chegou. começou logo a trabalhar. Ganhava 25 tostões pela pena de cada dia de 9 horas curvada ao ofício: 9 horas verdadeiras, e um ofício duro. Foi crescendo, foi-se especializando, e acabou por ganhar 6$50. Era a jorna maior dessas operárias, ao tempo. Entretanto tomou-se bonita, foi requestada, amou, e casou. O marido também trabalhava na fábrica de tejolos. Veio o primeiro filho. Por via das doenças do pequeno largou a fábrica e meteu-se na venda do peixe.

- Porque assim olhava mais pela criança, e faltava à venda quando era preciso ...

Inquiro dos lucros do seu negócio. Ela responde cautamente.

- Há dez anos, era bem bom ... Agora, depois da guerra, é o pior que se faz por aí... Não há peixe no mar, a carestia é uma coisa por demais ... E quando se lhes pede caro, as freguesas não compram. Hoje tenho 8 tostões de lucro ... O mais que faço, num dia bom, é 12 escudos ... Mas isso é lá de longe em longe ...

Esplica-me então como se desenvolve o negócio do peixe.

- São grandes vapores, que vêm desses mares, cheios de gêlo, de sal, e com tanto peixe que pode encher muitas camionetas ...

- E onde o pescam?, pergunto eu.

Olha-me com estranheza e responde:

-Ah! Isso não sei. Por esses mares...

E continua a contar, numa linguagem característica, impossível de transcrever:

O peixe, nos grandes navios a vapor, chega a Lisboa. Descarregam-no no frigorífico e aí passa pelas mãos do primeiro intermediário. Grandes negociantes compram logo todo o carregamento e procedem depois à lota.




Varinas na Ribeira
(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa)

O peixe vai para a lota em caixas e canastras. O graúdo pode ir em caixas de 40 pargos, 200 pescadas, etc. A sardinha, o carapau, vende-se em canastras de 10 centos, mais ou menos. A lota faz-se no recinto do frigorífico ou na Ribeira Nova.  Pinta-me a cena na Ribeira.

- As caixas e as canastras em fila, com aquêle lindo peixe a brilhar, e os compradores pelo meio, tudo a falar alto, é uma coisa mesmo bonita de ver... É como no cinema...

A lota começa por valorizar o artigo. Vai do preço maior ao menor. 800, 280, 220, 190, 150 ...

- Chue! brada o comprador, quando o preço chega ao ponto desejado.

Pertence-lhe o quinhão. Pode pagar de pronto ou a crédito, se tiver crédito. O peixe passa para as mãos do segundo intermédio. Êste agora reparte o seu lote por umas 20 peixeiras, destas que andam pelas ruas, de porta em porta. Geralmente partem da Ribeira com uma carga de 20 a 30 quilos na canastra, entre peixe miúdo e graúdo, no valor de 20 a 50 escudos, carregado à cabeça.




Varinas na Ribeira
(Autor: Amadeu Ferrari ; Fonte: Arquivo Fotográfico de Lisboa)



A senhora Rosa Pereira, peixeira de Lisboa no ano de graça de 1940, sai da Ribeira Nova em passo vivo, aí pelas 9 da manhã, e começa a sua venda pelas alturas do Socorro. Vai seguindo sempre, apregoando e vendendo, até ao Pote de Água, perto do Areeiro, onde termina o seu dia de trabalho pelas 3 e 4 horas da tarde. Então é que almoça. Às vezes sobejam-lhe umas dúzias de sardinhas, ou de carapaus, que entram na economia do lar.

- Mas faz-me mais arranjo vendê-las...

Interrogo-a com curiosidade:

- Porque não começa a vender antes do Socorro? Da Ribeira Nova até ali é um bom bocado... Como muita gente... Compradores... Poderia vender...

Ela entra então a dizer-me dos seus dares e tomares de peixeira a contas com a polícia.

- Porque a polícia proibe... A polícia não nos deixa vender nas vizinhanças dos mercados! As peixeiras, ali pela Baixa, só podem andar caladas, sem um prègão, Se alguém as chamar, sim senhor, podem subir a escada e vender. Mas nada de prègão, nada de parar na rua e vender uma marmota a quem passar.

Mortificada, conta-me a cena pior da sua vida de vendedeira.

- Um dia, não havia sombra de polícia pelo sítio, poisei a canastra no passeio e comecei a vender uma eirozes. Logo às primeiras palavras vi o polícia aparecer, um à paisana, e prendeu-me sem mais aquelas. O freguez, especado na minha frente, ficou varado, e até com medo de ser preso, também. Quando eu comecei a chorar teve pena de mim e acompanhou-me à esquadra. Queria pagar-me a multa. Como era a primeira vez, multaram-me só com 6$50. Mas eu que os não tinha comigo? 4 escudos no bolso, e mais nada. E não aceitaram o dinheiro da mão do meu freguez... Ai, nem me quero lembrar! O tempo passava, eu desfazia-me em bagadas, mas não era assim que arranjava o dinheiro. Tinha 40 escudos de peixe na canastra, com a demora podia estragar-se tudo, a venda do dia estava perdida, e ainda por cima as eirozes fugiam-me por todos os lados, as malditas, como cobras... Ai o que eu chorei, o que eu pedi! O meu filho, com 3 meses, em casa, eu a rebentar com leite, e ele, coitadinho, a chorar com fome, de certeza... Enfim lá apareceu quem me emprestou o que faltava para a multa, e saí livre, mas Deus me livre doutra como aquela...

Continua a contar-me as imposições da polícia.

- Se andarmos pelo passeio com a canastra à cabeça, são 75 escudos de multa. Se molharmos alguém com a água do peixe é o mesmo. Se nos apanharem descalsas, temos multa, e cadeia. Ah! Triste vida!

Olha para os pés, mostra-me uma chaga, e afirma:

- É do chinelo! O pior que pode acontecer aos pés é andar calçados! E então no inverno? Os chinelos molhados, todo o dia, é um horror, com os pés metidos nestes estojos...

Tem um geito de aborrecimento, eloquente e simples, e olha com atenção os meus sapatos. Mas não diz mais nada.

Pergunto-lhe o que pensa da polícia.

- Há de tudo. Bons e maus. Deve dizer-se que perdoam muita coisa...

A senhora Rosa Pereira não sabe ler nem escrever, mas é esperta, faz contas de cabeça, e num instante desfia a mais embrulhada história de dinheiros. Idéias políticas, não tem. A sua classe não está sindicada, e ela nunca pensou nos benefícios do Sindicato. Entende que o mundo está bem governado desde que as famílias possam viver com honra, religião, paz e abundância.

Inquiro das suas reclamações de classe:

- Nunca pensamos nisso. O que me parecia melhor era deixarem-nos vender como quiséssemos, mesmo paradas na rua, nada de impostos, e que andasse descalso quem quisesse andar.

Quando lhe perguntei sôbre as vantagens e desvantagens dos dois mesteres em que se ocupou, ela respondeu-me sem hesitações:

- A vida de operária é boa só por se ter uma féria certa. Quanto ao resto, é o pior que há... A peixeira tem mais liberdade, anda ao sol, anda à chuva, mas não atura patrão. Há assim uma idéia, na peixeira, de que é patrão de si mesma...

E lá se foi, muito direita, com a canastra equilibrada na cabeça, as suas chitas claras, o seu cheiro violento a maresia. Não tardei em ouvi-la apregoar na rua:

- Ó vivinha da costa!
- Ó pescada do alto!

- Ó pargo fresco!"

Maria Archer, in Revista Municipal nº 4, Ed. Câmara Municipal de Lisboa, s/d (1940?)