"Sei quem você é". Assim começa a autobiografia dos anos (1993-99) de Ruth Reichl como crítica de restaurantes do New York Times.
Ser crítico dos restaurantes de topo no mais importante jornal da mais competitiva cidade equivale a ter sobre eles direito de vida ou morte - a ténue linha que separa a falência do sucesso comercial de um projecto restaurativo traça-se muitas vezes com a tinta das palavras da crónica que o aprecia. Tratar bem tal personagem é pois regra de ouro; reconhecê-la, obrigação comum a todos os funcionários.
Evitar reconhecimento, de modo a poder vivenciar a experiência do comum cliente, o objectivo do crítico.
Todo o livro é construído à volta deste conflito. À surpresa inicial de ser reconhecida pela companheira do vôo que a levava para Nova Iorque numa visita preparatória - não só por ser reconhecida mas pela quantidade de informações referentes à sua vida pessoal que a sua interlocutora, funcionária menor num dos possíveis alvos de análise, possuía - contrapôs a autora durante os anos de trabalho no jornal a composição de uma série de personagens que lhe permitissem manter o indispensável anonimato. Verdadeiros heterónimos, com história, personalidade, gostos, é a história da sua criação, da sua influência no comportamento da autora, da interacção com os vários restaurantes escolhidos como paradigmáticos das diversas situações (um por personagem) que é desenvolvida durante o livro.
Fascinante para mim é o grau de complexidade que, a este nível, se exige da crítica restaurativa (era comum a autora só a fazer após 5 ou 6 visitas, com e sem companhia, ao almoço e ao jantar), bem como os conceitos (arquitectónicos, restaurativos, de serviço) que estão por detrás dos restaurantes abordados. Um outro mundo, longe da Lisboa comedida que habitamos e do que imagino ser o orçamento disponibilizado aos críticos profissionalizados.
Muito bem construído, bem escrito, divertido, instrutivo. Óptima companhia.
" (...) Ficámos sentadas a tarde inteira, deliciando-nos com gostos e texturas. Um puro e branco quadrado de bacalhau chegou, como um enorme marshmallow polvilhado por torresmos. Ao mordê-lo esperar-se-ia uma sabor oceânico para se ser confrontado com algo completamente diferente, algo rico e profundo e misterioso. O peixe, escalfado em gordura de ganso, absorvera o gosto da ave. Foi uma sensação simultaneamente vertiginosa e excitante, como se voando e nadando em simultâneo. O frango tinha igualmente sofrido uma transformação, lentamente escalfado num banho alimonado até perder o seu carácter de capoeira. Dividido em longas tiras, dificilmente carne, quase só uma suave delicadeza, um veículo para as especiarias, o cítrico e o roliço sabor do trufado puré de Verão sobre o qual pairávamos (...)"
"(...) "Nenhum restaurante consegue alterar a comida em cima do acontecimento, mas quando a crítica do New York Times aparece, pode proporciona-lhe um tempo bem passado. A cozinha selecciona as maiores framboesas. O chefe de sala coloca-a na mesa mais sossegada no meio da sala, com um empregado dedicado em exclusivo. O escanção assegura-se que cada vinho seja o correcto e que o seu copo nunca esteja vazio. O pasteleiro esforça-se mais um pouco." Com um gesto acentuei a largura do nosso compartimento. "Sabes que não posso deixar que isto aconteça de todas as vezes que saímos para comer" (...)"
(*)Garlic and Sapphires, The Secret Life of a Critic in Disguise, Ruth Reichl
Ser crítico dos restaurantes de topo no mais importante jornal da mais competitiva cidade equivale a ter sobre eles direito de vida ou morte - a ténue linha que separa a falência do sucesso comercial de um projecto restaurativo traça-se muitas vezes com a tinta das palavras da crónica que o aprecia. Tratar bem tal personagem é pois regra de ouro; reconhecê-la, obrigação comum a todos os funcionários.
Evitar reconhecimento, de modo a poder vivenciar a experiência do comum cliente, o objectivo do crítico.
Todo o livro é construído à volta deste conflito. À surpresa inicial de ser reconhecida pela companheira do vôo que a levava para Nova Iorque numa visita preparatória - não só por ser reconhecida mas pela quantidade de informações referentes à sua vida pessoal que a sua interlocutora, funcionária menor num dos possíveis alvos de análise, possuía - contrapôs a autora durante os anos de trabalho no jornal a composição de uma série de personagens que lhe permitissem manter o indispensável anonimato. Verdadeiros heterónimos, com história, personalidade, gostos, é a história da sua criação, da sua influência no comportamento da autora, da interacção com os vários restaurantes escolhidos como paradigmáticos das diversas situações (um por personagem) que é desenvolvida durante o livro.
Fascinante para mim é o grau de complexidade que, a este nível, se exige da crítica restaurativa (era comum a autora só a fazer após 5 ou 6 visitas, com e sem companhia, ao almoço e ao jantar), bem como os conceitos (arquitectónicos, restaurativos, de serviço) que estão por detrás dos restaurantes abordados. Um outro mundo, longe da Lisboa comedida que habitamos e do que imagino ser o orçamento disponibilizado aos críticos profissionalizados.
Muito bem construído, bem escrito, divertido, instrutivo. Óptima companhia.
" (...) Ficámos sentadas a tarde inteira, deliciando-nos com gostos e texturas. Um puro e branco quadrado de bacalhau chegou, como um enorme marshmallow polvilhado por torresmos. Ao mordê-lo esperar-se-ia uma sabor oceânico para se ser confrontado com algo completamente diferente, algo rico e profundo e misterioso. O peixe, escalfado em gordura de ganso, absorvera o gosto da ave. Foi uma sensação simultaneamente vertiginosa e excitante, como se voando e nadando em simultâneo. O frango tinha igualmente sofrido uma transformação, lentamente escalfado num banho alimonado até perder o seu carácter de capoeira. Dividido em longas tiras, dificilmente carne, quase só uma suave delicadeza, um veículo para as especiarias, o cítrico e o roliço sabor do trufado puré de Verão sobre o qual pairávamos (...)"
"(...) "Nenhum restaurante consegue alterar a comida em cima do acontecimento, mas quando a crítica do New York Times aparece, pode proporciona-lhe um tempo bem passado. A cozinha selecciona as maiores framboesas. O chefe de sala coloca-a na mesa mais sossegada no meio da sala, com um empregado dedicado em exclusivo. O escanção assegura-se que cada vinho seja o correcto e que o seu copo nunca esteja vazio. O pasteleiro esforça-se mais um pouco." Com um gesto acentuei a largura do nosso compartimento. "Sabes que não posso deixar que isto aconteça de todas as vezes que saímos para comer" (...)"
(*)Garlic and Sapphires, The Secret Life of a Critic in Disguise, Ruth Reichl
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