Querida Mô,
Encontrei-o já perdido nas traseiras de uma das prateleiras do alto. No meio das lombadas esfiapadas dos clássicos do Camilo, vermelho côr de sangue cozido pela transpiração de gerações de mãos que os seguraram, folheando-os ávidos (o Camilo perdeu hoje, muito do apelo que trazia, não sei porquê a estes portugueses embotados a sibilante ironia do Eça os cativa mais que a aspereza de Camilo, mais terra-a-terra e mais directa), a envelhecer com outros nomes que já deixei de lembrar. O título e a idade fizeram-me querer relê-lo, perceber quanto na cidade velha se mantinha dos hábitos oitocentistas - a evolução dos comércios, a mudança ou a constância de usos, os âmbitos, os ares.
Parti assim Baixa fora, Chiado acima com este "Novo Guia do Viajante em Lisboa" editado no ano da graça de 1880 em quarta edição "muito aumentada". À falta de um mapa da época, perdi-me várias vezes, tantas quanto a República e os novos heróis acrescentaram à toponímia existente na cidade. Esqueci-me de levar o primeiro levantamento cartográfico da cidade, contemporâneo deste guia... muito me teria ajudado.
Bateu, dolente na tarde calma, o sino da minha barriga e apercebi-me que já ia fenecendo a ortodoxa hora de almoçar. Precisamente quando procurava pelas ruas - ou devo dizer as ruas - onde se situavam restaurantes e botequins de antanho.
Onde ficaria a rua do Chiado com o recomendadíssimo Grande Hotel ("a primeira casa de pasto de Lisboa, tanto pela boa sociedade que a frequenta, como pela perfeição de seus diversos e exquisitos manjares. É seu proprietário o bem conhecido Matta. Fornece jantares diplomáticos, ceias para bailes, etc.")? No Chiado certamente, mas crismada como, no presente?
Na Baixa, as ruas mantiveram quase todas a toponímia original (valha-nos o culto a S. Pombal!). A rua da Prata deveria orlar-se de cheiros à hora das refeições, tal a profusão de locais - o Estrella de Oiro no número 289, o Manuel Lourenço no número 100, o João do Gallo no número 54, o Chuça no número 53 e ainda um pasteleiro afamado, o Garcia no número 267. Com excepção de algumas pastelarias, nada resta da função restaurativa na rua, ocupados os espaços com comércio menos gorduroso e translada aquela para as ruas paralelas, menos glamorosas (e onde já vai o brilho comercial da Baixa...).
Não encontrei referência ao restaurante de Pessoa na rua dos Correeiros ainda que se me alegrasse o coração por saber que o Irmãos Unidos para quem Almada pintou o retrato de Pessoa já existisse ("entrada pela Praça de D. Pedro, 113"). Do mesmo modo, da geografia pessoana já existiam, 30 anos antes, o Martinho do Largo de Camões ("ponto de reunião dos litteratos e politicos") e o Martinho da Neve ("debaixo da arcada da Praça do Commercio, no fim da rua da Prata").
Não descobri o Café Central ("fornece almoços de garfo, ceias, etc. É frequentado pelos rapazes da melhor sociedade, os quaes alli se reúnem á noite até alta hora. Tem gabinetes reservados") e também teria gostado de encontrar, em alegre e gravemente tradicional operação, casas com nomes tão programáticos como o Gaito (onde ficaria a rua dos Algibebes?), o Antigo Cambalhota ("Rua Oriental do Passeio, 145, entrada pela escada"), o Antigo Magina ("Pateo do Duque (atraz do theatro de D. Maria), tem também entrada pela rua de Santo Antão, 9"), o Toboas ("Travessa de S. Domingos, 47"), o Antigo Penim ("Travessa do Regedor, 18; entrada pela escada"). Ou parar no Romão ("Rua do Arco do Bandeira, 10") para degustar os "bons pasteis e boas ostras" pelos quais era afamado.
Ou, no Cais do Sodré, apesar dos pubs actuais, encontrar ainda o Café Price (taberna ingleza) e comer um dos seus "almoços ou jantares à ingleza; é notável pelos seus bifes, e muito frequentada por estrangeiros e maritimos."
Mas, falando de bifes, já me contentaria em encontrar vivo, de boa saúde e em pleníssima forma o Marrare (o das Sete Portas na "Travessa de Santa Justa") e, oh, comer um dos seus bifes. Isso sim, far-me-ia acreditar que a minha cidade era eterna.
BIFES À MARRARE
Por pessoa: 1 bife do pojadouro ou alcatra; manteiga, sla e pimenta; 1 dente de alho; sumo de limão; leite morno gordo
Numa frigideira pequena derreta-se a manteiga; junte-se o alho cortado às fatias e o bife que se deixa corar, retirando-o mal passado. Junte-se sal e pimenta, o resto da manteiga e algumas colheres de leite, mexendo-se a frigideira pelo cabo, de trás para a frente, sem parar. Estando o molho engrossado, juntem-se 5 a 6 gotas de sumo de limão. Acrescente-se os bifes para aquecer, deitando-se no prato de servir que deve estar muito quente.
Encontrei-o já perdido nas traseiras de uma das prateleiras do alto. No meio das lombadas esfiapadas dos clássicos do Camilo, vermelho côr de sangue cozido pela transpiração de gerações de mãos que os seguraram, folheando-os ávidos (o Camilo perdeu hoje, muito do apelo que trazia, não sei porquê a estes portugueses embotados a sibilante ironia do Eça os cativa mais que a aspereza de Camilo, mais terra-a-terra e mais directa), a envelhecer com outros nomes que já deixei de lembrar. O título e a idade fizeram-me querer relê-lo, perceber quanto na cidade velha se mantinha dos hábitos oitocentistas - a evolução dos comércios, a mudança ou a constância de usos, os âmbitos, os ares.
Parti assim Baixa fora, Chiado acima com este "Novo Guia do Viajante em Lisboa" editado no ano da graça de 1880 em quarta edição "muito aumentada". À falta de um mapa da época, perdi-me várias vezes, tantas quanto a República e os novos heróis acrescentaram à toponímia existente na cidade. Esqueci-me de levar o primeiro levantamento cartográfico da cidade, contemporâneo deste guia... muito me teria ajudado.
Bateu, dolente na tarde calma, o sino da minha barriga e apercebi-me que já ia fenecendo a ortodoxa hora de almoçar. Precisamente quando procurava pelas ruas - ou devo dizer as ruas - onde se situavam restaurantes e botequins de antanho.
Onde ficaria a rua do Chiado com o recomendadíssimo Grande Hotel ("a primeira casa de pasto de Lisboa, tanto pela boa sociedade que a frequenta, como pela perfeição de seus diversos e exquisitos manjares. É seu proprietário o bem conhecido Matta. Fornece jantares diplomáticos, ceias para bailes, etc.")? No Chiado certamente, mas crismada como, no presente?
Na Baixa, as ruas mantiveram quase todas a toponímia original (valha-nos o culto a S. Pombal!). A rua da Prata deveria orlar-se de cheiros à hora das refeições, tal a profusão de locais - o Estrella de Oiro no número 289, o Manuel Lourenço no número 100, o João do Gallo no número 54, o Chuça no número 53 e ainda um pasteleiro afamado, o Garcia no número 267. Com excepção de algumas pastelarias, nada resta da função restaurativa na rua, ocupados os espaços com comércio menos gorduroso e translada aquela para as ruas paralelas, menos glamorosas (e onde já vai o brilho comercial da Baixa...).
Não encontrei referência ao restaurante de Pessoa na rua dos Correeiros ainda que se me alegrasse o coração por saber que o Irmãos Unidos para quem Almada pintou o retrato de Pessoa já existisse ("entrada pela Praça de D. Pedro, 113"). Do mesmo modo, da geografia pessoana já existiam, 30 anos antes, o Martinho do Largo de Camões ("ponto de reunião dos litteratos e politicos") e o Martinho da Neve ("debaixo da arcada da Praça do Commercio, no fim da rua da Prata").
Não descobri o Café Central ("fornece almoços de garfo, ceias, etc. É frequentado pelos rapazes da melhor sociedade, os quaes alli se reúnem á noite até alta hora. Tem gabinetes reservados") e também teria gostado de encontrar, em alegre e gravemente tradicional operação, casas com nomes tão programáticos como o Gaito (onde ficaria a rua dos Algibebes?), o Antigo Cambalhota ("Rua Oriental do Passeio, 145, entrada pela escada"), o Antigo Magina ("Pateo do Duque (atraz do theatro de D. Maria), tem também entrada pela rua de Santo Antão, 9"), o Toboas ("Travessa de S. Domingos, 47"), o Antigo Penim ("Travessa do Regedor, 18; entrada pela escada"). Ou parar no Romão ("Rua do Arco do Bandeira, 10") para degustar os "bons pasteis e boas ostras" pelos quais era afamado.
Ou, no Cais do Sodré, apesar dos pubs actuais, encontrar ainda o Café Price (taberna ingleza) e comer um dos seus "almoços ou jantares à ingleza; é notável pelos seus bifes, e muito frequentada por estrangeiros e maritimos."
Mas, falando de bifes, já me contentaria em encontrar vivo, de boa saúde e em pleníssima forma o Marrare (o das Sete Portas na "Travessa de Santa Justa") e, oh, comer um dos seus bifes. Isso sim, far-me-ia acreditar que a minha cidade era eterna.
BIFES À MARRARE
Por pessoa: 1 bife do pojadouro ou alcatra; manteiga, sla e pimenta; 1 dente de alho; sumo de limão; leite morno gordo
Numa frigideira pequena derreta-se a manteiga; junte-se o alho cortado às fatias e o bife que se deixa corar, retirando-o mal passado. Junte-se sal e pimenta, o resto da manteiga e algumas colheres de leite, mexendo-se a frigideira pelo cabo, de trás para a frente, sem parar. Estando o molho engrossado, juntem-se 5 a 6 gotas de sumo de limão. Acrescente-se os bifes para aquecer, deitando-se no prato de servir que deve estar muito quente.
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