sábado, 6 de agosto de 2011

Garfo de lata

Confesso a minha ignorância. Não sei explicar porque é que um restaurante agraciado tem a capacidade de me desiludir profundamente a ponto de considerar a minha ida não só uma perfeita perda de tempo - e de dinheiro - como um atentado à minha condição de cliente informado que se dá ao trabalho de consultar opiniões oficiais (à falta de outras mais à mão) aquando da escolha das opções degustativas em viagem.

[Entenda-se: a minha desilusão decorre da minha exigência, a qual aumenta em razão directa com a força dos encómios e os preços do menu. Pouco mais exijo à tasca da beira de estrada que honestidade na cozinha e limpeza nas instalações - valorizando tudo daí para cima. Já quem se compromete com arquitecturas profundas, títulos palavrosos e, deliberada ou casualmente, prémios sonantes, terá de provar muito mais do que ter o tempero no sítio, a cozedura no ponto, ou o responsável na sala.]

Não percebo porque é que se considera que o investimento num projecto restaurativo acaba com a última factura do mestre de obras ou, porque é que se considera que a formação do pessoal de sala termina na aprendizagem da montagem da mesa ou porque é que se vai abrandando o cuidado na escolha dos pratos do dia ou na qualidade dos produtos que se levam ao cliente.

[Pressuponho que, aquando da visita dos júris que levam à atribuição de prémios, o restaurante ainda viva o seu tempo de núpcias, com a realidade a coincidir com a idealização; a não ser assim, teria de aceitar que essas visitas são anunciadas ou que nem sequer existiram, o que me recuso a fazer.]

Trancoso é uma vila encastoada no alto da Beira, reconhecida pela maioria dos portugueses com mais de quarenta anos e passagem pelos antigos liceus (parece que "liceu" é nome proibido no léxico eduquês contemporâneo, ainda que o nóvel ministro da tutela seja tão distraído como eu e continue a assim designar os locais de educação ao nível do secundário) como a terra do Bandarra, pai putativo avant la lettre do sebastianismo, através do mito do Encoberto. Inscritas na pedra de algumas das casas do casco antigo, perduram memórias da comunidade judaica de antanho transmutada em cristã nova a pedido da Santa Inquisição.





Simpático casco antigo, amuralhado, com o inevitável altaneiro castelo (o qual fecha à hora do almoço, não vão os turistas querer falhar a refeição), o pelourinho medieval encimado pela gaiola quinhentista,


as ruas sinuosas com hortênsias em profusão, agradável surpresa na austeridade da cinzenta pedra.



Numa delas, o Àrea Benta, agraciado com um Garfo de Prata dos Sabores Beirões 2010 pelo Diário As Beiras, referenciado positivamente no Guia Boa Cama Boa Mesa (Expresso), alvo de encómios vários por parte de alguns dos grandes críticos nacionais, com ainda mais uma recomendação de uma insuspeita figura local.


Interior aprazível, em edifício restaurado, com evidentes cuidados de preservação e exibição dos materiais originais, em saudável diálogo com materiais e visão contemporâneos. Bar no piso térreo, duas salas no primeiro, unidos os pisos por escada aberta.


Cadeiras confortáveis, mesas sem atoalhado mas com individuais de agradável visão. Copos e talheres em consonância com o espaço. Bom espaço entre as mesas, ar condicionado, tranquilidade e algum requinte o que, aliado às supracitadas referências, promessa de um bom momento de refeição, apenas afectada pela música, um enjoativo new age, uns decibéis acima do razoável.




Infelizmente, tal não se veio a concretizar. Primeira desilusão, os pratos mais emblemáticos só estão disponíveis por encomenda com um mínimo de 24 horas de antecedência. Discutível política, que afasta  do turista acidental os cartões de visita...

Segunda desilusão, os pratos do dia. De peixe, um salmão grelhado em oferta. Salmão grelhado? Quem vem a um restaurante de referência, em Trancoso, experimentar salmão grelhado? De carne, o corriqueiro pernil de porco assado e o ensopado de borrego que se dispensaram.

Restaram os pratos da lista, nem muito original, nem conservadoramente tradicional, nem... acentuadamente entusiasmante. Atingido o consenso, encomendaram-se as Lascas de Bacalhau à Moda do Lagar e a Empada de Coelho.


Bacalhau de fraca qualidade, mal cozinhado e desleixadamente lascado, tendo-se encontrado algumas espinhas. Azeite em profusão que me deixou algumas dúvidas. Azeitonas de decoração, tal o pouco sabor. Salvaram-se as batatas, cozidas sem ser até ao ponto de desagregação.


Pior, muito pior, o prato seguinte. Recheio onde os ossos também marcaram presença (será uma nova moda para garantir a naturalidade do produto?), massa sem uniformidade na cozedura, com uma ou outra parte encruada, o uso  - que para mim é inaceitável, num restaurante com estes preços e estes prémios - de queijo industrial em farripas pré-fabricadas sobre tomate pouco saboroso e (ó glória de mandar! Ó vã cobiça: Desta vaidade, a quem chamamos Fama!) alface completamente boa para o lixo, de pontas queimadas e já a amarelar de tanto tempo à espera de ser usada...


Leite creme queimado correcto.

Chamada de atenção para a formação dos funcionários de sala: numa cidade que se quer turística, num país que precisa da actividade mais do que nunca, não seria de descurar uma maior aposta nos conhecimentos transmitidos ao pessoal. Inquirir por uma pretensa judiaria (a qual, de facto não existe nos termos em que a podemos encontrar, por exemplo, em Castelo de Vide) e ficar com a sensação, perante a reacção do empregado, de que se perguntou por marcianos, não é a melhor despedida. Principalmente porque, a cerca de 200 metros, se estão a desenrolar escavações que buscam vestígios desse mesmo lugar e onde se prevê construir um museu dedicado ao tema...

Apreciação: Cozinha -  2.67/5 ; Global - 12.68/20

3 comentários:

  1. Estive recentemente no Restaurante Área benta...realmente concordo com a apreciação que fez relativamente à necessidade de reserva dos pratos mais tradicionais com 24 horas de antecedência, o que realmente é mau e afasta os turistas ocasionais (o meu caso).
    Contudo os pratos que pedi estavam muito bons, muito saborosos..o pernil de porco com míscaros estava delicioso com o toque de ananás e pêra...e a vitela acompanhada com ananás grelhado estava deliciosa, uma autentica delicia!
    Em relação ao salmão grelhado, realmente duvido que alguém vá a Trancoso para pedir salmão.
    Contudo recomendaria este Restaurante, gostei e os preços não sendo baratos eram acessíveis.
    Sem duvida que achei o pernil e a vitela uma autentica delicia.

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  2. Obrigado pela partilha, caro anónimo.

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  3. Tivesse escolhido os Medalhões...

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